quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Alagados

   Mal pregara os olhos, e o despertador já estava tocando, que nem todo dia. Em sua mente já ouvia os primeiros acordes de Alagados - tradução musical de seu dia, literalmente, ou quase. Obrigou o corpo a desgrudar da cama que naquele momento parecia a melhor do mundo apesar do colchão velhinho, e o player imaginário fez chegar a seus ouvidos, juntamente com o raio de sol que escapava à fresta da janela e agora lhe banhava o rosto, as primeiras linhas da canção: "Todo dia, o sol da manhã vêm e lhes desafia...", na voz dos Paralamas do Sucesso. Pôs os pés no chão friorento e, junto ao arrepio frio que o choque térmico causou-lhe na espinha, ouvia "traz do sonho pro mundo quem já não o queriaaa...". "Palafitas, trapiches, farrapos: filhos da mesma agonia" - era a água congelante do chuveiro que lhe fazia arder a pele e arrastava junto a si os resquícios de indolência que resultavam de uma noite mal dormida. E, com a canção ecoando em sua mente, se arrumou e saiu.
    
    "E a cidade" lá fora, não tinha "braços abertos num cartão postal" mas trazia sim, na vida real, punhos fechados que lhe negavam oportunidades, cidade que, diariamente, "mostra a face dura do mal". 
    
    Caminhava agora pelas ruas, não de Trenchtown ou Favela da Maré, mas encontrava-se alagado. Alagado num mar revolto, feito de gente e de concreto, na ferocidade do horário de pico. Passos apressados de quem precisa voar pra manter a si mesmo e a mais alguém naquela selva de pedra, mesmo sem ter asas. E a esperança?, perguntava-se. "A esperança não vem do mar, vem das antenas de TV"- novamente o eco da canção em sua mente. É, a esperança não podia mesmo vir do mar gris em que se encontrava. E como qualquer outro, só lhe restava mesmo torcer pra que hoje à noite, no último capítulo da novela, o mocinho da novela casasse com a mocinha. E ir vivendo, que nem todo dia: "A arte é de viver da fé, só não se sabe fé em quê".
    
    Caminhou alguns minutos em silêncio absoluto: vácuo de palavras e pensamentos. E aí, a palavra-luz se acendeu em sua mente: não. A primeira vez que pronunciou, mais parecia uma indagação que uma resolução: não?! E falou novamente: não. Depois de repetir algumas vezes, adquiriu um tom respeitável, apesar de ainda meio trêmulo.

    Sobre os mares cinzentos do concreto nascia um ser humano iluminado.
    Ali, alagado, nascia um cidadão.