Escrever é como querer fixar no papel os pigmentos voláteis da experiência, como tentar segurar no ar o perfume fugaz do instante eterno.
É desespero em capturar e reter a beleza nas mãos, essa criatura volúvel que vez ou outra concede o ar de sua graça aos nossos sentidos.
É mastigar e reprocessar o vivido sob outra ótica, reinventar a cena em outras paletas e poder escolher o foco e o contraste.
É lugar propício para matizar a dor e tornar bela a saudade.
A letra no papel é exata em criar entrelinhas e reticências, em dar espaço a tudo que vier com os olhos que a leem, em embalar juntos a concretude e o vir a ser na mesma dança.
Em justapor universos paralelos múltiplos e maravilhosos e em cunhar nas palavras um portal para revisitar as memórias, romper as dimensões.
Enquanto espalho as letras, sinto-me espalhar na eternidade.
*
quarta-feira, 4 de dezembro de 2019
terça-feira, 3 de dezembro de 2019
Teia
Se exibe na medida em que se ilude.
Se engana tanto quanto pensa que engana.
As formas e fôrmas ilusórias se confundem com o espelho :
não pode saber o que é imagem quando se fez objeto.
Os contornos da realidade se perdem no ar em mais um clique, em mais um minuto de veneração à imagem do desconhecido. De vários desconhecidos, já que a página nunca chega ao fim.
A teia não pergunta sobre a vontade de continuar em transe : não há respiro nem pausa.
Enquanto aspira profundos tragos das vidas alheias, abandona a sua própria.
Ou cria uma outra, paralela e em cores mais vivas, com enquadramento melhor...
No fim do dia, se ambas as platéias tiverem sido convencidas, terá ganho a noite.
Aos poucos nos deixamos, perdemos a alma.
*
Se engana tanto quanto pensa que engana.
As formas e fôrmas ilusórias se confundem com o espelho :
não pode saber o que é imagem quando se fez objeto.
Os contornos da realidade se perdem no ar em mais um clique, em mais um minuto de veneração à imagem do desconhecido. De vários desconhecidos, já que a página nunca chega ao fim.
A teia não pergunta sobre a vontade de continuar em transe : não há respiro nem pausa.
Enquanto aspira profundos tragos das vidas alheias, abandona a sua própria.
Ou cria uma outra, paralela e em cores mais vivas, com enquadramento melhor...
No fim do dia, se ambas as platéias tiverem sido convencidas, terá ganho a noite.
Aos poucos nos deixamos, perdemos a alma.
*
quarta-feira, 13 de novembro de 2019
Lua
Escrevo para traduzir em palavras a loucura de dentro.
Teço a teia dos versos para nela deixar registros de que o caos também pode ser são.
As conexões a princípio parecem esparsas e aleatórias, as palavras soltas, vãs.
Mas continuada a trabalheira, quando os contornos ganham definição, e os versos ganham pares, e quando salpicados de rimas e pausas e ritmo, lá estou eu, inteiro.
Às vezes escancarado, numa denúncia auto-pronunciada de minha miséria e fragilidade, das minhas inconstâncias, devaneios e desvarios. Às vezes sutilmente oculto numa estória de outrem. Às vezes falando de tristeza e feiura, às vezes falando da beleza do mar. Ou da lua.
Escrevo para me lembrar de quem sou ou quem fui à cinco minutos ou à cinquenta anos, para ter um jeito de me dizer que os caminhos percorridos tinham beleza e cor, e que as escolhas foram quase todas feitas na lucidez do amor, este livre espírito em que habito.
Escrevo às vezes em desespero, e enquanto os garranchos rápidos se organizam e tomam forma e as sílabas encontram seus lugares, me encontro. Esqueço a urgência dos dias, e me lembro que é mais urgente sentir o sabor de cada um deles.
Enquanto escrevo me lembro que tenho direito de olhar o céu, de me encantar com a lua cheia e de me deixar enluarar e nadar na luz dourada. De suspirar enquanto olho fixamente para ela, como se olhasse em seus olhos. Me lembro que é permitido subir num banquinho ou num cavalete e ficar na ponta do pé só pra ver ela nascer...
A lua hoje, deitada no azul
pontilhou de luz o meu chão
abriu as portas da emoção
despertou do sono o coração
Por entre as folhas e galhos e nuvens
sorriu para mim num flerte e piscou :
eu vi seus cílios de cetim
soprarem um beijo pra mim
*
Teço a teia dos versos para nela deixar registros de que o caos também pode ser são.
As conexões a princípio parecem esparsas e aleatórias, as palavras soltas, vãs.
Mas continuada a trabalheira, quando os contornos ganham definição, e os versos ganham pares, e quando salpicados de rimas e pausas e ritmo, lá estou eu, inteiro.
Às vezes escancarado, numa denúncia auto-pronunciada de minha miséria e fragilidade, das minhas inconstâncias, devaneios e desvarios. Às vezes sutilmente oculto numa estória de outrem. Às vezes falando de tristeza e feiura, às vezes falando da beleza do mar. Ou da lua.
Escrevo para me lembrar de quem sou ou quem fui à cinco minutos ou à cinquenta anos, para ter um jeito de me dizer que os caminhos percorridos tinham beleza e cor, e que as escolhas foram quase todas feitas na lucidez do amor, este livre espírito em que habito.
Escrevo às vezes em desespero, e enquanto os garranchos rápidos se organizam e tomam forma e as sílabas encontram seus lugares, me encontro. Esqueço a urgência dos dias, e me lembro que é mais urgente sentir o sabor de cada um deles.
Enquanto escrevo me lembro que tenho direito de olhar o céu, de me encantar com a lua cheia e de me deixar enluarar e nadar na luz dourada. De suspirar enquanto olho fixamente para ela, como se olhasse em seus olhos. Me lembro que é permitido subir num banquinho ou num cavalete e ficar na ponta do pé só pra ver ela nascer...
A lua hoje, deitada no azul
pontilhou de luz o meu chão
abriu as portas da emoção
despertou do sono o coração
Por entre as folhas e galhos e nuvens
sorriu para mim num flerte e piscou :
eu vi seus cílios de cetim
soprarem um beijo pra mim
*
sexta-feira, 1 de novembro de 2019
Maré
Não posso ser transparente, o rio de águas claras a correr sobre as pedras.
Minhas águas são turvas e fundas, e obscuras.
Tenho camadas.
Preciso me guardar pra mim um pouquinho, como a Monalisa e seu segredo sorridente:
Cores sóbrias e mãos sobrepostas e uma mensagem encoberta.
Nas curvas sombrias, alguma pedra onde eu possa esconder um peixe ou uma concha,
onde me guardo e aguardo.
Sob o cascalho e os seixos, o inesperado.
Gosto de ter um canto secreto para guardar um mistério que nem mesmo sei,
mas que sempre invento e reservo como sendo tudo de mais precioso em mim.
Tenho desejos.
Ei, psiu!
Tenho desejos.
Mas não faça alarde!
Me parece um tanto esquisito dizê-los, pois escapam de mim fortuitos,
donos de si e flutuantes.
E vão-se embora.
Sempre voam e vão.
Somem em minhas espumas.
Não posso ser tão transparente, nem tão clárida, tenho que ser louca.
Em minha loucura tudo cabe em mim.
Bravio que sou, até o que não me cabe de algum jeito me atravessa,
de algum jeito me conserta, a seu jeito me transforma.
*
Minhas águas são turvas e fundas, e obscuras.
Tenho camadas.
Preciso me guardar pra mim um pouquinho, como a Monalisa e seu segredo sorridente:
Cores sóbrias e mãos sobrepostas e uma mensagem encoberta.
Nas curvas sombrias, alguma pedra onde eu possa esconder um peixe ou uma concha,
onde me guardo e aguardo.
Sob o cascalho e os seixos, o inesperado.
Gosto de ter um canto secreto para guardar um mistério que nem mesmo sei,
mas que sempre invento e reservo como sendo tudo de mais precioso em mim.
Tenho desejos.
Ei, psiu!
Tenho desejos.
Mas não faça alarde!
Me parece um tanto esquisito dizê-los, pois escapam de mim fortuitos,
donos de si e flutuantes.
E vão-se embora.
Sempre voam e vão.
Somem em minhas espumas.
Não posso ser tão transparente, nem tão clárida, tenho que ser louca.
Em minha loucura tudo cabe em mim.
Bravio que sou, até o que não me cabe de algum jeito me atravessa,
de algum jeito me conserta, a seu jeito me transforma.
*
quinta-feira, 31 de outubro de 2019
Mau humor
Ácido e náusea feitos de tédio.
Composto de notas dissonantes e todos os sons mais feios.
É de matéria densa e pegajosa : se engancha nas tripas.
Contorce o estômago e corrói o fígado.
Desunera o sangue e amarela os olhos.
Deixa a pele sebenta.
Fede.
Azeda o leite e arruína o arroz.
Enverga o esqueleto.
Escorre lento sobre tudo e respinga ao redor suas gotas indesejadas.
É sólido mas se espalha, rastejante.
Enquanto seus tentáculos se expandem e se contraem, tenho ânsia de vômito.
O danado ainda ronrona, como se merecesse carinho, e ai de mim se não o satisfaço.
Toco o invólucro gelatinoso e em lenta agonia deslizo os dedos.
O ácido estomacal sobe involuntariamente à boca : engulo.
A teia agora me enlaça e adere ao meu corpo, e já não podemos nos dissociar.
Tomo a fera em meus braços e a oculto debaixo da blusa:
prefiro que não lhe vejam os dentes, pois parecem muito com os meus.
*
Composto de notas dissonantes e todos os sons mais feios.
É de matéria densa e pegajosa : se engancha nas tripas.
Contorce o estômago e corrói o fígado.
Desunera o sangue e amarela os olhos.
Deixa a pele sebenta.
Fede.
Azeda o leite e arruína o arroz.
Enverga o esqueleto.
Escorre lento sobre tudo e respinga ao redor suas gotas indesejadas.
É sólido mas se espalha, rastejante.
Enquanto seus tentáculos se expandem e se contraem, tenho ânsia de vômito.
O danado ainda ronrona, como se merecesse carinho, e ai de mim se não o satisfaço.
Toco o invólucro gelatinoso e em lenta agonia deslizo os dedos.
O ácido estomacal sobe involuntariamente à boca : engulo.
A teia agora me enlaça e adere ao meu corpo, e já não podemos nos dissociar.
Tomo a fera em meus braços e a oculto debaixo da blusa:
prefiro que não lhe vejam os dentes, pois parecem muito com os meus.
*
sexta-feira, 25 de outubro de 2019
Azul - brilhante
É tempo da estiagem.
Tempo das reservas.
As lágrimas permanecem dentro para não gastar a água e a vida estocadas.
Por fora a superfície brilha, com sua blindagem de cetim intacta:
Foi para agora que teceram em nós a casca espessa.
O que está dentro não deve sair.
Não há do lado de fora nada que deva entrar.
O céu exibe um azul escandaloso e penetrante, e quanto mais a luz se expande e se intensifica, mais caem as folhas e mais se retrai a pupila.
É tanto sol que constrange a pele.
O desfile do astro-rei desgasta e produz dormências.
Empurra para a inevitável nudez dos galhos, para a espera do recomeçar dos ciclos.
Emudece e provoca recolhimento.
Suscita à quietude, à reflexão...
Induz o coma para preservar a vida.
Em dias ressequidos, a luz do sol é desejo de chuva...
Para quem espera a nuvem, o azul-brilhante é a cor da tristeza.
*
Tempo das reservas.
As lágrimas permanecem dentro para não gastar a água e a vida estocadas.
Por fora a superfície brilha, com sua blindagem de cetim intacta:
Foi para agora que teceram em nós a casca espessa.
O que está dentro não deve sair.
Não há do lado de fora nada que deva entrar.
O céu exibe um azul escandaloso e penetrante, e quanto mais a luz se expande e se intensifica, mais caem as folhas e mais se retrai a pupila.
É tanto sol que constrange a pele.
O desfile do astro-rei desgasta e produz dormências.
Empurra para a inevitável nudez dos galhos, para a espera do recomeçar dos ciclos.
Emudece e provoca recolhimento.
Suscita à quietude, à reflexão...
Induz o coma para preservar a vida.
Em dias ressequidos, a luz do sol é desejo de chuva...
Para quem espera a nuvem, o azul-brilhante é a cor da tristeza.
*
terça-feira, 22 de outubro de 2019
Fadiga
Estou cansado das minhas palavras.
Cansado de ouví-las flutuar da minha boca e tocar seus ouvidos em vão.
Cansado de tecer as teias dos versos para neles captar alguma beleza repetida que você cansou de ver.
Para que servem os seus olhos?
Não é o mesmo o som que chega aos seus ouvidos?
Que janela escolheu para se ver?
Me ouço desfiando a mesma trama, sobre a mesma lógica e sob o mesmo céu, e antes que eu termine a primeira frase, como quem conhece o futuro, já me prevejo tristemente arrependido pela decisão de separar os lábios e esboçar algum som.
Eu devia ser silêncio.
Mais sábio, mais tenro.
Sustentar os ares do mistério didaticamente.
Retirar os óculos do rosto, suspirar e fingir que desisto, que entendo.
Deixar as bobagens a ver navios, devidamente sem resposta.
Me colocar em seu lugar, imaginar todas as causas, causos e acasos que lhe produziram e que te puseram pra olhar a vida daí.
Cascavilhar alguma última paciência, sustentar a face calma.
Sorrir e acenar.
Piscar lentamente os olhos e balançar a cabeça num sorriso amarelo.
Deixar passar a piada e a vida.
Deixar que ela passe em cima de você.
Deixar que a sua cara se espatife na primeira parede e que os estilhaços pontiagudos da sua língua atinjam em cheio o seu pé.
A dor então virá pra criar uma fresta na medida exata da luz que precisa entrar.
Enquanto faz careta e pula num pé só procurando alívio, descobrirá as sombras de dentro. Se assombrará com as feiúras que guardou e se sentirá pequeno, inacabado.
Com a dor, virá espaço para abrigar o mundo inteiro em amor.
E eu não terei mais que me cansar.
*
Cansado de ouví-las flutuar da minha boca e tocar seus ouvidos em vão.
Cansado de tecer as teias dos versos para neles captar alguma beleza repetida que você cansou de ver.
Para que servem os seus olhos?
Não é o mesmo o som que chega aos seus ouvidos?
Que janela escolheu para se ver?
Me ouço desfiando a mesma trama, sobre a mesma lógica e sob o mesmo céu, e antes que eu termine a primeira frase, como quem conhece o futuro, já me prevejo tristemente arrependido pela decisão de separar os lábios e esboçar algum som.
Eu devia ser silêncio.
Mais sábio, mais tenro.
Sustentar os ares do mistério didaticamente.
Retirar os óculos do rosto, suspirar e fingir que desisto, que entendo.
Deixar as bobagens a ver navios, devidamente sem resposta.
Me colocar em seu lugar, imaginar todas as causas, causos e acasos que lhe produziram e que te puseram pra olhar a vida daí.
Cascavilhar alguma última paciência, sustentar a face calma.
Sorrir e acenar.
Piscar lentamente os olhos e balançar a cabeça num sorriso amarelo.
Deixar passar a piada e a vida.
Deixar que ela passe em cima de você.
Deixar que a sua cara se espatife na primeira parede e que os estilhaços pontiagudos da sua língua atinjam em cheio o seu pé.
A dor então virá pra criar uma fresta na medida exata da luz que precisa entrar.
Enquanto faz careta e pula num pé só procurando alívio, descobrirá as sombras de dentro. Se assombrará com as feiúras que guardou e se sentirá pequeno, inacabado.
Com a dor, virá espaço para abrigar o mundo inteiro em amor.
E eu não terei mais que me cansar.
*
sexta-feira, 6 de setembro de 2019
Esperança extraviada
Beba
Nas fontes dos poetas, dos artistas
Folheie os jornais e as revistas
Vasculhe tudo quanto possa haver
Ouça
Nos címbalos sonoros, noutras notas
Escute os discos velhos, tantas obras
Desvende o mistério que restou...
Onde a esperança se escondeu?
Onde o amor esmaeceu?
Onde ficaram os versos raros e a flor?
Pode outro dia clarear ?
Se não há tempo pra sonhar ?
Se nem mesmo a gente se atreve a imaginar ...
um outro lugar ?
*
Nas fontes dos poetas, dos artistas
Folheie os jornais e as revistas
Vasculhe tudo quanto possa haver
Ouça
Nos címbalos sonoros, noutras notas
Escute os discos velhos, tantas obras
Desvende o mistério que restou...
Onde a esperança se escondeu?
Onde o amor esmaeceu?
Onde ficaram os versos raros e a flor?
Pode outro dia clarear ?
Se não há tempo pra sonhar ?
Se nem mesmo a gente se atreve a imaginar ...
um outro lugar ?
*
quinta-feira, 29 de agosto de 2019
Aos amores desperdiçados
Se a matéria prima que constitui o amor fosse plástica,
ou se os tempos fossem outros, teríamos nos amado.
Se aquele que eu era vislumbrasse o ser que eu seria,
se as dimensões tempo-espaço pudessem ser atravessadas,
eu facilmente viajaria e me diria para cultivar você.
Eu teria me dito pra ler o seu jeito e escolher melhor as palavras,
me forçaria a emergir da minha confusão e olhar para você.
Será que eu veria?
Te enxergaria?
Cada flor que brotou da sua boca, e que não colhi?
Perceberia em seu olhar a dor-esperança-mistério-desejo?
Teria me dado a você?
Hoje, no escorrer das horas e por entre os assaltos das lembranças,
decido que era justo ter te deixado entrar.
Nada me parece mais correto, nada mais bonito...
Que a melodia escancarasse as portas do meu ser.
Que depois dos acordes tivesse havido o beijo.
Que eu te trouxesse flores.
Que eu te abraçasse de um jeito melhor.
Que eu te olhasse um pouco mais demoradamente.
Que eu deixasse você ler o que eu sou.
Você me entregou seus tons e gestos e palavras...
Ternura e canção.
Quem dera eu soubesse me dar,
e acolher teu coração
*
ou se os tempos fossem outros, teríamos nos amado.
Se aquele que eu era vislumbrasse o ser que eu seria,
se as dimensões tempo-espaço pudessem ser atravessadas,
eu facilmente viajaria e me diria para cultivar você.
Eu teria me dito pra ler o seu jeito e escolher melhor as palavras,
me forçaria a emergir da minha confusão e olhar para você.
Será que eu veria?
Te enxergaria?
Cada flor que brotou da sua boca, e que não colhi?
Perceberia em seu olhar a dor-esperança-mistério-desejo?
Teria me dado a você?
Hoje, no escorrer das horas e por entre os assaltos das lembranças,
decido que era justo ter te deixado entrar.
Nada me parece mais correto, nada mais bonito...
Que a melodia escancarasse as portas do meu ser.
Que depois dos acordes tivesse havido o beijo.
Que eu te trouxesse flores.
Que eu te abraçasse de um jeito melhor.
Que eu te olhasse um pouco mais demoradamente.
Que eu deixasse você ler o que eu sou.
Você me entregou seus tons e gestos e palavras...
Ternura e canção.
Quem dera eu soubesse me dar,
e acolher teu coração
*
quarta-feira, 28 de agosto de 2019
Miopia
Eu te amo.
Amo os fios desgrenhados e ruivos que teimam em aflorar em sua barba densa.
Amo este perfume indizível que se esconde entre seus ombros e nuca.
Amo nossa dança precisa e imprevisível, cada passo.
Amo retirar os óculos do seu rosto e colocar sobre a escrivaninha.
Amo os momentos em que eles de nada servem.
Amo os seus olhos nus sob o fim da tarde, atravessados de luz, líquidos.
Amo nossos encontros míopes, a cena borrada ao fundo,
o mundo inteiro que termina em nós.
*
Amo os fios desgrenhados e ruivos que teimam em aflorar em sua barba densa.
Amo este perfume indizível que se esconde entre seus ombros e nuca.
Amo nossa dança precisa e imprevisível, cada passo.
Amo retirar os óculos do seu rosto e colocar sobre a escrivaninha.
Amo os momentos em que eles de nada servem.
Amo os seus olhos nus sob o fim da tarde, atravessados de luz, líquidos.
Amo nossos encontros míopes, a cena borrada ao fundo,
o mundo inteiro que termina em nós.
*
domingo, 4 de agosto de 2019
Quereres
Não quero viver como alguém que rearranja os móveis , esperando assim refazer a dinâmica da vida.
Eu é que me movo.
Me movo dos fluxos habituais, movo meus olhos cansados para outras vistas, outros horizontes.
Deixo a brisa me despetalar e me desnudar.
Movo meu corpo engessado do lugar, rompendo a casca de poeira que se acumulou em minha alma imóvel.
Quero vida.
Quero a dinâmica do mover-se novamente.
Flutuar entre as certezas para então acolher o incerto.
Liberdade para formular hipóteses, tranquilidade para vê-las refutadas pela vida...
Serenidade nos olhos e nas mãos.
*
Eu é que me movo.
Me movo dos fluxos habituais, movo meus olhos cansados para outras vistas, outros horizontes.
Deixo a brisa me despetalar e me desnudar.
Movo meu corpo engessado do lugar, rompendo a casca de poeira que se acumulou em minha alma imóvel.
Quero vida.
Quero a dinâmica do mover-se novamente.
Flutuar entre as certezas para então acolher o incerto.
Liberdade para formular hipóteses, tranquilidade para vê-las refutadas pela vida...
Serenidade nos olhos e nas mãos.
*
sábado, 3 de agosto de 2019
Reconciliação
Um corpo que dança
sorri, criança.
Traduz em gesto
antiga lembrança:
sorvete, chiclete, balão, picolé
Devolve aos olhos a cadência
do peito extingue a carência
e se vai a dor :
de amor, de espinhaço ou de dedão do pé
A alma flutua num rodopio
os sons lhe provocam algum arrepio
e embalam um jeito bonito de ser
No suor exorciza as horas vazias
esvazia a mente das coisas sombrias
e surge alguém novo, capaz de se ver
sorri, criança.
Traduz em gesto
antiga lembrança:
sorvete, chiclete, balão, picolé
Devolve aos olhos a cadência
do peito extingue a carência
e se vai a dor :
de amor, de espinhaço ou de dedão do pé
A alma flutua num rodopio
os sons lhe provocam algum arrepio
e embalam um jeito bonito de ser
No suor exorciza as horas vazias
esvazia a mente das coisas sombrias
e surge alguém novo, capaz de se ver
sexta-feira, 2 de agosto de 2019
Agosto
Vento
que move o farfalhar
faz a folha dançar
traz o rufar dos tambores até a concha - suspiro de mar
Vento em folha
o ar preenchido das notas graves
da surdez dos tambores a sons mais suaves
encontro de encanto esse teu sibilar
Vento
o que cantas não sei se é um triste lamento
ou se os tons anunciam um novo momento
à gosto dos sonhos, algum despertar ?
Vento e folha :
tormento ou dança ?
harmonia ou castigo ?
batalha ou beleza ?
* * *
que move o farfalhar
faz a folha dançar
traz o rufar dos tambores até a concha - suspiro de mar
Vento em folha
o ar preenchido das notas graves
da surdez dos tambores a sons mais suaves
encontro de encanto esse teu sibilar
Vento
o que cantas não sei se é um triste lamento
ou se os tons anunciam um novo momento
à gosto dos sonhos, algum despertar ?
Vento e folha :
tormento ou dança ?
harmonia ou castigo ?
batalha ou beleza ?
* * *
sexta-feira, 5 de julho de 2019
Inflorescências
As revoluções, para serem válidas e vivas, não precisam ser grandes.
Não começam visíveis.
Podem prescindir da multidão e serem verdade.
Não são grito, fato ou palco toda vez : faixas são dispensáveis, assim como cartazes e manchetes vibrantes não precisam vir toda vez.
Algumas são lentas, sóbrias.
Podem vir da força calma da brisa.
Podem ser raízes finas e frouxas que encorpam desapercebidas.
Fortes, lentas.
Toque. Olhar. Abraço. Presença.
Gesto. Jeito. Encontro. Oferta.
Cuidado de mãos e palavras ditas com cuidado.
Silêncios.
Existências que se ramificam e que se abrem em direção às outras, que se partilham e se acolhem.
Que se partem, repartem.
Encontram um pouco de cura em deixar-se cuidar.
Descobrem que o somatório dos vazios produz milagre e não carência.
Que distribuir-se ao outro conforma um outro eu presente em todas as partes.
Que é bem mais bonito ver nossos fragmentos de beleza cintilarem no mosaico que formamos juntos, justapostos.
Nossos buracos deixam de ser falta e se tornam linguagem.
As peças ausentes deixam de ser tão lamento e se tornam bandeira, semente.
As perguntas (dúvidas, dores) encarnam parte beleza, parte mistério:
O jardim flori.
*
Não começam visíveis.
Podem prescindir da multidão e serem verdade.
Não são grito, fato ou palco toda vez : faixas são dispensáveis, assim como cartazes e manchetes vibrantes não precisam vir toda vez.
Algumas são lentas, sóbrias.
Podem vir da força calma da brisa.
Podem ser raízes finas e frouxas que encorpam desapercebidas.
Fortes, lentas.
Toque. Olhar. Abraço. Presença.
Gesto. Jeito. Encontro. Oferta.
Cuidado de mãos e palavras ditas com cuidado.
Silêncios.
Existências que se ramificam e que se abrem em direção às outras, que se partilham e se acolhem.
Que se partem, repartem.
Encontram um pouco de cura em deixar-se cuidar.
Descobrem que o somatório dos vazios produz milagre e não carência.
Que distribuir-se ao outro conforma um outro eu presente em todas as partes.
Que é bem mais bonito ver nossos fragmentos de beleza cintilarem no mosaico que formamos juntos, justapostos.
Nossos buracos deixam de ser falta e se tornam linguagem.
As peças ausentes deixam de ser tão lamento e se tornam bandeira, semente.
As perguntas (dúvidas, dores) encarnam parte beleza, parte mistério:
O jardim flori.
*
quarta-feira, 26 de junho de 2019
Lavando os pincéis
Algumas pessoas, com seu jeito e tom nos ensinam a ser grandes.
Trazem o mundo e levam a infância embora.
Descortinam as crises do existir, fazem pensar.
Outras carregam o brincar em volta dos olhos e nos propõem, com seus gestos,
a expansão de um universo em que tudo caiba junto.
A infância e o caminho a seguir.
O brincar e o saber.
O sofrer, e ainda assim, o crer.
Em seus olhos, como num espelho, nossa criança sorri e acena.
Os sentidos rememoram algo dentro que acorda o movimento de sonhar.
As engrenagens da criação voltam lentamente a girar, e as cores se movem de novo no carrossel.
Tem-se vontade de ter as mãos cheias de giz de cera, de lápis de cor e pincéis de aquarela outra vez.
De deixar as cores vivas se espalharem no papel, de manchar de tinta as mãos e todas as páginas do caderno.
E depois, gastar as horas ao pé da pia lavando todo aquele estrago, olhando a tinta serpentear diluída nas águas...
Enquanto tudo escorre, um sorriso.
*
Trazem o mundo e levam a infância embora.
Descortinam as crises do existir, fazem pensar.
Outras carregam o brincar em volta dos olhos e nos propõem, com seus gestos,
a expansão de um universo em que tudo caiba junto.
A infância e o caminho a seguir.
O brincar e o saber.
O sofrer, e ainda assim, o crer.
Em seus olhos, como num espelho, nossa criança sorri e acena.
Os sentidos rememoram algo dentro que acorda o movimento de sonhar.
As engrenagens da criação voltam lentamente a girar, e as cores se movem de novo no carrossel.
Tem-se vontade de ter as mãos cheias de giz de cera, de lápis de cor e pincéis de aquarela outra vez.
De deixar as cores vivas se espalharem no papel, de manchar de tinta as mãos e todas as páginas do caderno.
E depois, gastar as horas ao pé da pia lavando todo aquele estrago, olhando a tinta serpentear diluída nas águas...
Enquanto tudo escorre, um sorriso.
*
Penumbra
O sol se põe e a noite desce sobre a alma.
Mesmo que hajam estrelas, estes leves pontos cláridos, tudo é sombras aqui embaixo.
As dúvidas, aos milhares, se acumulam sobre os olhos como o pó sobre os móveis.
Tudo embaça, enturvece.
Como ousar tocar os sonhos, seguir em frente, mover a vida?
A névoa é densa, e as dores, sólidas.
As vontades, muitas.
Os desejos, vários.
As possibilidades, todas.
E por serem tantas, é nenhuma.
*
Mesmo que hajam estrelas, estes leves pontos cláridos, tudo é sombras aqui embaixo.
As dúvidas, aos milhares, se acumulam sobre os olhos como o pó sobre os móveis.
Tudo embaça, enturvece.
Como ousar tocar os sonhos, seguir em frente, mover a vida?
A névoa é densa, e as dores, sólidas.
As vontades, muitas.
Os desejos, vários.
As possibilidades, todas.
E por serem tantas, é nenhuma.
*
segunda-feira, 25 de março de 2019
A cadeira vazia
Olhei para o lado e te vi, mesmo ausente.
Quis buscar os teus olhos, pendurei tua imagem na mente.
Quis te contar tanta coisa!
Comentar sobre o tempo, reclamar do trânsito, dividir a angústia dos dias...
Cheguei em casa e quase ouvi o que tu dirias sempre, que deixasse os chinelos na porta, e lá os deixei.
Eu estava indo bem.
Quando embolei a camisa e estava para jogar a calça no sofá, foi que a coisa toda desandou.
Primeiro o nó, o embargo e a falta do ar.
O mundo que girou.
E foi como o colapso daquela barragem que passamos tanto tempo conversando mês passado.
Desmoronei.
Sucumbi.
Me esvaí.
Eu não tinha estruturas, e a tua ausência era chuva demais pra conter...
Fui amassando o barro, encalcando terra sobre terra até não poder mais me manter.
Disseram que eu estava sendo forte, e eu até vesti o disfarce.
Eu até pensei mesmo que estava tudo bem.
Cuidei dos preparativos, abracei quem veio nos ver.
Balbuciei alguma coisa sobre sobreviver à dor.
E eu sobrevivi.
Ela era tanta que me deixou dormente assim por quase um mês.
Passei uns dias fora, pensei em ti e na vida, e até pude agradecer.
Até voltei ao trabalho.
Mas quando cheguei em casa, e estava pra jogar a roupa amassada no sofá, foi nesse dia que tudo começou a me atingir de verdade...
As coisas poucas que dizias durante o jantar.
A companhia quieta aos programas de TV.
As palavras muitas que trocávamos em um só olhar ao ouvir uma notícia esperada.
Os resmungos sobre o preço do feijão.
Os fios de cabelo acumulados no ralo.
A pilha de roupa suja sobre a cadeira no quarto.
A roupa se foi, assim como os cabelos, os resmungos, os olhares, a companhia e as coisas.
O que me resta é prato, TV.
Alguma notícia, feijão.
Ralo.
E a cadeira vazia, metáfora de mim.
*
Quis buscar os teus olhos, pendurei tua imagem na mente.
Quis te contar tanta coisa!
Comentar sobre o tempo, reclamar do trânsito, dividir a angústia dos dias...
Cheguei em casa e quase ouvi o que tu dirias sempre, que deixasse os chinelos na porta, e lá os deixei.
Eu estava indo bem.
Quando embolei a camisa e estava para jogar a calça no sofá, foi que a coisa toda desandou.
Primeiro o nó, o embargo e a falta do ar.
O mundo que girou.
E foi como o colapso daquela barragem que passamos tanto tempo conversando mês passado.
Desmoronei.
Sucumbi.
Me esvaí.
Eu não tinha estruturas, e a tua ausência era chuva demais pra conter...
Fui amassando o barro, encalcando terra sobre terra até não poder mais me manter.
Disseram que eu estava sendo forte, e eu até vesti o disfarce.
Eu até pensei mesmo que estava tudo bem.
Cuidei dos preparativos, abracei quem veio nos ver.
Balbuciei alguma coisa sobre sobreviver à dor.
E eu sobrevivi.
Ela era tanta que me deixou dormente assim por quase um mês.
Passei uns dias fora, pensei em ti e na vida, e até pude agradecer.
Até voltei ao trabalho.
Mas quando cheguei em casa, e estava pra jogar a roupa amassada no sofá, foi nesse dia que tudo começou a me atingir de verdade...
As coisas poucas que dizias durante o jantar.
A companhia quieta aos programas de TV.
As palavras muitas que trocávamos em um só olhar ao ouvir uma notícia esperada.
Os resmungos sobre o preço do feijão.
Os fios de cabelo acumulados no ralo.
A pilha de roupa suja sobre a cadeira no quarto.
A roupa se foi, assim como os cabelos, os resmungos, os olhares, a companhia e as coisas.
O que me resta é prato, TV.
Alguma notícia, feijão.
Ralo.
E a cadeira vazia, metáfora de mim.
*
domingo, 17 de março de 2019
Gargalhada
Entre as mais lindas cenas que o olho é capaz de ver, tenho uma preferência por assistir aquele instante sutil em que nasce o sorriso.
Se pudéssemos colocar em câmera lenta, veríamos uma estranha energia luminosa se espalhando por entre os tecidos da face, as pequenas explosões de fluxo sanguíneo produzindo rubor, a aquarela em que se transforma aquele rosto que ri.
A composição inteira parece líquida, em uma transparência agitada pela qual se entrevê a alma.
Parece até um descuido do corpo deixar tudo assim tão às claras.
Uma fresta se abre, e nos conectamos ao outro pelo fio prateado que une os olhares.
Risonhos, os olhos miúdos se contraem pela ebulição do sorrir, e se encontram e se compreendem nesse lugar etéreo em que nos fundimos no prazer da semelhança,
do encontro.
Transcendência.
Nem mesmo os meio-sorrisos, os risos contidos pelas regras do lugar ou pela etiqueta social conseguem deter a energia que inevitavelmente fui pelos capilares mais finos da pele, como um relâmpago a se espalhar no céu.
Quando a boca não gargalha, a energia liquefaz o olhar, e a pele se faz escarlate.
É um pequeno milagre, uma semicoisa.
Mas toca o oceano do ser, e reverbera em mim em ondas infinitas.
*
Se pudéssemos colocar em câmera lenta, veríamos uma estranha energia luminosa se espalhando por entre os tecidos da face, as pequenas explosões de fluxo sanguíneo produzindo rubor, a aquarela em que se transforma aquele rosto que ri.
A composição inteira parece líquida, em uma transparência agitada pela qual se entrevê a alma.
Parece até um descuido do corpo deixar tudo assim tão às claras.
Uma fresta se abre, e nos conectamos ao outro pelo fio prateado que une os olhares.
Risonhos, os olhos miúdos se contraem pela ebulição do sorrir, e se encontram e se compreendem nesse lugar etéreo em que nos fundimos no prazer da semelhança,
do encontro.
Transcendência.
Nem mesmo os meio-sorrisos, os risos contidos pelas regras do lugar ou pela etiqueta social conseguem deter a energia que inevitavelmente fui pelos capilares mais finos da pele, como um relâmpago a se espalhar no céu.
Quando a boca não gargalha, a energia liquefaz o olhar, e a pele se faz escarlate.
É um pequeno milagre, uma semicoisa.
Mas toca o oceano do ser, e reverbera em mim em ondas infinitas.
*
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