segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Apagão em fundo de quintal


A chama trêmula da vela acesa sobre o pires de porcelana fazia o véu da noite tremer inteiro à sua vista, banhando o profundo azul de sol como fosse dia, numa fusão de cores tão intensas quanto sutis, que embriagavam-lhe o olhar desatento a vagar por entre as estrelas do céu...

Permanecia ali, os pés pendurados, consumindo as cores como um ópio que lhe concedia a insanidade necessária para que entendesse a linguagem da lua e pudesse trocar umas idéias com ela, que lá de cima, enxerga melhor as coisas todas que cá ocorrem. 

Ali, a escuridão lhe fazia redescobrir a plenitude que é banhar-se de lua enquanto respira-se estrelas, a alma derretendo em sorriso...

Era linda a forma como a luz alaranjada sobre a cesta de flores azuis recortava o céu em retas e curvas mais-que-perfeitas. Ali, a assimetria parecia ser a explicação para aquelas percepções visuais impecáveis apesar de tanta irregularidade nas formas: uma verdadeira tese escrita contra a crença humana na beleza puramente simétrica, e nem era necessário usar sequer uma palavra. 

As roupas que há dias pendurara no varal ainda permaneciam ali, suspensas no ar e largadas ao vento, deixando-se levar pra onde quer que a brisa as levasse, mergulhadas em plena suavidade, parecendo estar mesmo convencidas de que, naquela noite, eram as primeiras bailarinas do espetáculo que ali se via...

É claro que não havia música no ar: a rede elétrica encontrava-se em queda, e ninguém se propunha a pegar o violão empoeirado. Além disso, as baterias dos celulares tinham descarregado no meio do dia. 
Entretanto, o silêncio era musical. Não reinava absoluto: vez ou outra o vento sibilava macio contra a folhagem da samambaia num canto de parede, dando breves pausas à musicalidade que só a ausência do som é capaz de fazer ouvir.

Ali, pés pendurados, dava-se ao luxo de admirar suas constelações favoritas, que feito diamantes lapidados luziam cravejadas no manto celeste, tão bem dispostas quanto os botões das camisas de algodão que a avó costumava costurar. Eram pontinhos tão reluzentes que lhe confundiam a vista, fazendo-a piscar repetidas vezes a fim de recuperar o foco...

Ali, pés pendurados e café com leite morninho a descer pela garganta, recuperava a poesia que há tempos parecia ter-lhe abandonado, mas que na verdade havia simplesmente adormecido por entre a freneticidade da rotina metropolitana e que ali, em meio ao apagão, ressurgia junto à chama trêmula, à luz de velas brancas... 
E daquelas que se compra na vendinha do bairro, mesmo.