quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Coisas de sabiá


   Acabara de ser atingido pelo companheiro de bando e ainda estava meio desorientado. Mas sabia que tinha que dar seu jeito, limpar o corpo e continuar vivendo que a batalha não ia acabar tão cedo.  Na hora do disparo ainda estava na antena de transmissão, mas quando fora atingido saiu a esmo, e ao cair em si, estava em cima de um galho da goiabeira. Olhou de lado e viu outros companheiros na mesma condição. A mesma cara de desespero, um brilho sinistro na vista embaçada pós- ataque.  Ali, no galho, recuperando-se do susto, Dorim planejou sua reviravolta: daria o troco. Os companheiros de galho pareciam ter os mesmos sentimentos que os seus. Queria estar lá em cima da antena, e aí, mirar em quem estivesse no degrau de baixo.  Queria ver se repetir a cena que à pouco vivera: o atingido sairia a esmo, vista turva e sentidos sem direção, até achar-se num galho da goiabeira. E ele, lá de cima da antena, sorriria, feliz.

   Resolvera aproveitar e beliscar uma goiaba, enquanto arquitetava a vingança. Pensando bem, podia ir mais longe, quem sabe achar uma outra antena com um outro desavisado na grade de baixo. E aí... puf! Atirava.  Seria interessantíssimo. Só precisava achar uma goiabeira e uma antena.
   
   Resolveu então partir em busca do lugar perfeito para a execução do seu plano perfeito.  Passou por bosques e jardins, atravessou florestas e mangues...  Subiu e desceu montanhas, se aventurou no concreto das construções... desceu por uns abismos  e avistou os trilhos do metrô... emergiu das profundezas e sujou os pulmões com o ar da metrópole...

   Já ia cansando-se de perambular, quando, ao ver uma fileira colossal de postes de energia interligados por um montão de fios pretinhos, a luzinha do seu cérebro acendeu.
É aqui! É aqui! - gritava seu subconsciente.
Agora era só ir pro fio de cima e esperar alguém chegar no fio de baixo.  E foi.
Não demorou muito e outros juntaram-se a ele. E aí, que felicidade!  Começou a atirar que nem um louco em quem estava embaixo. Mas não acertou em ninguém. E aí, quando ele percebeu, estava sozinho de novo. Os outros foram pra bem longe, agora. É que perto do poste não tinha goiabeira. Aí, enraiveceu-se, e mirou no chão, mesmo.  E foi embora procurar a goiabeira, pra poder abastecer de novo.

   Acabou esquecendo-se do que tinha acontecido no poste e continuou a vida.

   Umas primaveras depois, passou perto do poste sem querer. E quando viu, viu uma goiabeira.  E aí, ficou tão, tão, tão, feliz que percebeu que nem tava mais triste por não ter conseguido atirar em quem tava na grade de baixo naquele dia que não tinha goiabeira. Porque agora tinha goiabeira, e porque era toda dele porque no dia em que tinha comido goiaba, atirou no chão e a goiabeira nasceu!  
Os outros sabiás, quando viram que sabiá Dorim tinha uma goiabeira só dele, resolveram também sair poraí atirando no chão pra ter uma goiabeira só sua, linda de morrer feito aquela...

   E aí, umas primaveras depois, debaixo da fileira colossal de poste de energia, agora tinha uma fileirona linda de goiabeira cheia de goiaba madura. E um belo dia, quando a dona Clara que morava na casa da antena voltou pra casa de metrô, não sujou mais os pulmões com o ar da metrópole! 

É que umas primaveras atrás, Dorim plantara umas sementinhas embaixo do fio do poste, e aí, umas primaveras mais tarde, tudo tinha ficado melhor.



*

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Procura-se um poeta


 É, lembro dele sim...
Até definições lhe eram tocadas pela criticidade...
Costumava retocar até obras completas...
E até num copo d’água esborrotando, fazia gotejar suas impressões...

Pensava, imaginava, agia. Criava uns mundos. Desfazia outros.
E no silêncio da noite, chorava. É, chorava.
Esvaía-se da consciência, da moral, despia-se de preconceitos, e tão somente vazava pelos olhos. 
É que era tudo tão... perfeito.
Cada detalhe do viver lhe era incompreensivelmente compreensível.
A vida simplesmente fluía, sublime.

E as lágrimas complementavam-lhe o existir.

Tinha descoberto que o sofrer lhe faria crescer, e sofria como adubo espiritual.  Não hesitava em regar a alma se a terra se encontrasse seca.
Sim, amava. Com todas as forças que tinha, e junto ao seu sinônimo, o sofrer.
Apaixonadamente, apaixonava-se pelo máximo que podia.
E por pessoas, sabores, pelo mar e suas cores...  
Por olhares, sorrisos, em tudo que enxergava, via paraísos...

Até que um dia lhe compraram óculos, e um lenço azul para limpar as lentes. 
Agora o mundo parecia nítido demais... até doía na vista!
E via rugas nas pessoas, dentes amarelos nos sorrisos e esgotos nos paraísos.
E sua alma leve já não flutuava. 
Tornava-se aos poucos, infeliz.

E quando já quase sem cor na alma, terra seca rachada sem chuva, teve uma idéia que lhe salvou o existir: quebraria o óculos, é claro!
E quebrou. Mas quebrou só as lentes, e pronto: o mundo era bonito de novo. 

E aí, amarrou o lenço azul feito gravata borboleta e saiu poraí, borboleteando.
Quando passou poraqui, parecia que ia flutuar de tanta felicidade. Assobiava feito passarinho.

Dizem que dobrou ali na esquina, os olhos rasos d’água, jurando que via paraísos...
Onde?
Ora, deve estar por aí, seu moço. 
Tenho mais o que fazer que vigiar um fazedor de poemas, não acha? 
Passar bem.

Deliciosos clichês


Meu amor, desista. Não há como fugir dos clichês.
Mesmo quando você tentou fugir deles em suas letras, você as leu para mim sob a luz das estrelas...
Você me abriu a porta do seu carro, me beijou no portão...
Namoramos no banquinho da praça, dançamos sem música no meio do nada...

Quando eu te fiz uma canção e não cantei, você me escreveu, e não leu. E quando eu não te liguei, você fez birrinha e não ligou. Puro clichê.

Você me liga sempre pra dizer que tá com saudade, pra desejar bom dia,  pra desejar boa noite:  “ vou sonhar com você. Sonha comigo, tá, gata?”...

E aquela vez, lembra? Simplesmente não conseguíamos dar tchau ao telefone! Nunca pensei que essa história de “desliga você” fosse mesmo existente no mundo real. Aliás, isso é mesmo real? Será que não estive sonhando? “Ah, me belisca aí, vai!”

Não tem jeito, meu bem.  Somos mestres nos clichês, mesmo sem querer, e mesmo não querendo.
Ahh meu amor, amor meu...
Parece mesmo que você sempre esteve aqui. Talvez porque já estivesse mesmo, fotografado aqui no meu olhar, guardado em algum lugar da minha mente, num cantinho que só se fez mostrar quando você chegou...
E... se todos estes clichês existem de fato, porque não usá-los não é?

Pelo menos de vez em quando, prometo te dedicar um clichê.
E só pra ver no teu rosto esse sorriso que eu adoro, te escrevo uns clichês.
Clichês de coração.
Alguns meio bregas mesmo. Outros nem tanto.
Mas todos deliciosos.
Deliciosos clichês.