Faltavam cinco minutos pra meia noite, e depois de 11
intermináveis horas de estrada, chegaram ao hotel, que logo descobriram ser uma
pousada. Que logo descobriram ser uma “pensão estudantil”, que logo descobriram
não ter ar-condicionado, e nem ventiladores que dessem jeito no calor infernal que fazia.
Mas tudo bem, os quartos tinham janelas.
“De madrugada o tempo esfria”.
Só que não.
...
Às cinco e meia da manhã, batidas violentas na porta do
apartamento lhes arrancaram do sono que a pouco tinham conseguido agarrar-se. Ainda meia zonza, ela reconheceu a gangue feminina
que entrava furiosamente no quarto, liderada por ninguém menos que a professora de Geologia. Todas elas gritavam, histéricas, decididas a eliminar a preciosa indolência
matinal e obrigá-las iniciar o dia.
Tomaram café sob a custódia de Alan, o guia turístico, que
não parava de consultar freneticamente o relógio de pulso com o qual parecia
ter nascido, numa compulsão absurda por cumprir detalhadamente o roteiro de
visitação que havia criado para matar os pobres alunos do segundo ano. Seu
plano era tê-los mortos no fim do dia, para que dormissem todos logo após o
jantar.
Assim que entraram no ônibus, o adorado guia turístico
começou a lavagem cerebral em torno daquela nova propaganda do Governo do
Estado do Ceará, “ô, ceará, eu vou, eu vou, eu vou te visitaaar, te curtiiir,
te dividiiir, pra todo mundo vou te mostraaar...” – após 30 minutos de
repetição, a melodia era simplesmente enlouquecedora.
Depois de algum tempo dentro da condução, os ouvidos
começaram a tapar em função da variação de pressão atmosférica: estavam em
Juazeiro, subindo a colina do horto, rumo aos pés de Padre Cícero Romão Batista, com direito
à passagem pelo museu de cera. Mais
alguns minutos de caminhada já encontravam-se em meio à feira local, e desvencilhando-se
dos vendedores de fitinhas coloridas, chegaram até o museu.
...
Ela entrou
devagar, absorvendo os detalhes das fotografias e peças expostas, mas ao chegar
à sala das graças alcançadas, os arrepios espinhais sucessivos que sentiu ao
visualizar as centenas de mãos e pés e cabeças de madeira pendurados fizeram-na
caminhar rapidinho porta a fora, e instintivamente, seguir rumo à luz que vinha
da beira da chapada, de onde pôde contemplar uma das mais belas vistas da
depressão sertaneja: feito uma panela de barro, a chapada circundava (e
cozinhava) as cidades do Geopark Araripe, guardiãs das riquezas arqueológicas
cearenses... Um completo deleite para os olhos, que, afogados na amplitude da
visão, nem sabiam o que enxergar primeiro...
Deixou-se estar
ali, por nem sei quanto tempo, absorvendo o esplendor da paisagem à sua frente,
observando os pássaros a brincarem livres naquele magnífico cenário, desejando
ardentemente possuir asas que lhe permitissem mergulhar em todas aquelas cores,
almejando fundir-se a toda aquela beleza que lhe chegava aos olhos em doses fortes
demais para que resistisse ao sorriso que se formou no canto de sua boca, e que
ali ficou...
O que se via ali era no mínimo, surpreendente... Em meio ao
forte calor, à sequidão em que encontrava-se a vegetação pela falta de chuva e
apesar das inúmeras carcaças de gado morto que via-se pelo caminho, a natureza
insistia em transmitir seus sinais inconfundíveis de beleza, como que a dizer,
infinitamente:
“Enquanto houver vida, haverá esperança...”
Mantendo os olhos vívidos, ela deixava-se embriagar pela paisagem, abobalhada com a plenitude
que a cena lhe transmitia, a alma feito camaleão fotografando lentamente cada
detalhe do que via e inevitavelmente colorizando-se com as cores daquele
Cariri que mesmo seco, emanava vida...
E só por aquele momento, já valera a pena estar ali...
.