domingo, 30 de dezembro de 2018

Entranhas

O mal adentra em nós como podres raízes invisíveis e fétidas porém sólidas e cheias de vigor, desfazendo as coisas belas que com esforço desenháramos.
A capilaridade de suas veias é tão fluida e forte que assusta as artérias.
O bem se cristaliza, e assustado, se dissolve.
O oxigênio dá lugar ao carbono tão rapidamente quanto os olhos piscam, muito mais velozmente que a capacidade do peito de se renovar em ar puro, muito mais denso e permanente que a pureza anterior.
A poesia que carregáramos se deixa enlamear por tão pouco pó que só podemos concluir que a sujeira toda também vem de dentro:
um rio infinito de coisas nefastas e tristes.
Assim existimos.
Assim nos descobrimos, cobertos daquilo que mais odiamos e que parece mesmo ter brotado de nós.
Nos surpreendemos desenterrando cadáveres de ingratidão quando a resposta lógica deveria ser o bem.
Enxergamos por fim a confusa e paradoxal fonte de água doce que se descobre amarga, salobra e enturvecida.
Amedrontados, olhamos bem para dentro : não se vê o fundo, mas se vê o rosto.
Na imagem, o disforme e repulsivo eu.

*

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Turnera ulmifolia

Elas não nascem nos belos jardins.
Não crescem organizadas ou enfileiradas.
Não obedecem à métrica humana que tenta sem sucesso regular a natureza.
São volumosas, e em grandes tufos, brotam do nada.
Rompem o concreto ou o solo compactado bem no meio de Novembro,
em meio ao calor e à secura.

Avessas à todas as condições climáticas.

Avessas às reclamações muitas que fazemos da política, do ônibus lotado,
do sol de rachar, da falta de amor.
Ninguém escolheria essa época para plantar flores: nossos corações cansados sequer ousariam pensar em cor alguma, que dirá amarelo!

Amarelo? E despontando em grandes tufos?
Completamente inadequado!

Entretanto, parece que ninguém disse para elas
que flores precisavam ser plantadas para florir.
E mesmo se disséssemos, não entenderiam.
Falam uma linguagem outra que só compreende o seguir em frente, o recomeço.
E mesmo depois de um Outubro esquisito e intragável, elas estão lá.
Em todas as beiradas de caminho.
Desorganizadas, e por isso mesmo maravilhosas.

Esperança teimosa que brota das sementes esquecidas na sarjeta.

Uma provocação ao olhar, um convite à alma para reexpansão dos horizontes.
"Ei! Olhe pela janela! Olhe o céu, e depois olhe para nós!"
Ao revê-las, decido que já é tempo de se pintar de amarelo de novo.
Com elas, reaprendo e redescubro o que sempre foi:
ainda é tempo de ser esperança.


Vinte e nove de outubro

No dia seguinte, a manhã estava muda.
Assim como as ruas, os carros, as bocas.
O ar, antes leve e colorido, parecia denso, cinza.
O ônibus se arrastava lenta e pesadamente, concordando que não havia motivos para pressa...
Correr para quê?
Mover-se para onde?
O peso de 56 milhões de dedos recaía sobre todas as cabeças, roubava o oxigênio das veias e o brilho dos olhares.
Rostos apáticos, pasmados, desolados.
Corações exaustos da luta.
Forças esvaídas numa guerra perdida muito antes da batalha começar.
Muitos vestíamos preto inconscientemente.
Disposição nenhuma havia para tocar no assunto.
As pessoas eram todas um mar de corpos desmaiados e olhares vageando no espaço vazio.
Era tão estranho que parecia não ser real.
Era um NÃO em letras garrafais.
Era tão duro e grave que fingíamos que tinha sido só um sonho ruim.
Tudo era susto.
Tudo era luto.
Éramos todos silêncio.


quarta-feira, 2 de maio de 2018

Pitomba

Abro a geladeira.
Na minha frente, enxergo o potinho que guarda as magníficas esferinhas marrom-douradas.
Mergulho os dedos e encho a mão.
Uma ideia: levar pro quarto e completar a experiência com música e a visão do céu.
Executo o plano: me deito entre os lençóis fofinhos.
Seguro a bolinha número um entre o polegar e o indicador.
Observo por um segundo e ponho entre os dentes.
Pressiono.
O barulhinho que a casca cor de canela faz ao romper-se é um ploc carregado de magia e da leveza do brincar...
Som de infância.
Os acordes da música nos fones de ouvido completam a experiência, criando quase um mundo paralelo para o momento, uma cena de filme.
O fato de a frutinha estar gelada torna tudo uma religião.
A alma gargalha.
Um burburinho nas entranhas agradece aquele souvenir das tardes na casa da avó.
Pego as duas metades da casca, uma em cada mão, sinto o cheirinho ácido que se espalha no ar...
Dou aquela lambidinha básica na parte da casca que não guarda a polpa, e em seguida sugo a surpresinha gelada.
A língua estala de alegria com a batidinha de leve que decorre da sucção.
A bolinha suculenta passeia entre os dentes e é raspada, espremida e chupada até só restar o caroço: limpo, liso e seco.
Pausa pra olhar o caroço.
Pausa pra cuspir.
E pego a bolinha número dois.
Ploc!