quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Pólos

Oscilo entre querer tudo num raio:
Manifestação imediata
Instantânea
Urgente
Voraz 

E entre saber do tempo :
Que sabe que cada coisa tem o seu
Que cada instante vem de um transcorrer
Que todo fim é derivado de muitos meios
E que tudo passa 

Os dias em que estou no pólo do eu
Tomada de minha brevidade, espalhada na angústia de ser passageira e corpóreamente consciente da iminência da morte, apresso os passos do dia como se fosse possível me alcançar ali mais adiante, subir no horizonte um tanto mais cedo pra ver se ganho horas, pra ver se no acumulado dessa dança esperta de transpor o tempo acumulo algum dia a mais pra existir. 

Pra ver se vivo algum tantinho a mais.
Se vejo mais um desabrochar de flor, mais um sonho realizado, mais uma semente vingando. 
Pra ver se vem mais algum por do sol. 

No entanto, estando ali, imbricada na tarefa de adiantar as horas e dar oks em múltiplas listas, não me apercebo que ele se foi ainda mais depressa.
Caio na armadilha toda vez. 

E quando depois da correria infinda finalmente acolho arquejante os dias do outro pólo, o da lentidão, é que reencontro a eternidade. 

Nesse pólo, há tempo para ver como as nuvens deslizam e como se expandem no céu, e como são perfeitas no trabalho de se diluírem suavemente no azul. 
Há a possibilidade de notar que pelos buraquinhos da telha, nas falhas de encaixe, há um cinema invertido construído entre casa e céu em que as nuvens são as artistas principais e o sol, o projetor. 
Há esse milagre da ótica entre as teias de aranha do telhado. 
Neste pólo, reencontro olhos de olhar as folhinhas das árvores tremularem, e de ir notando as cigarras entrando no ar suaves como a noite se deixa cair sobre o dia. 
É também aqui que se admite ficar na rede, na penumbra, desde a hora em que ainda era tarde-brilhante. 

Que se vê a população do céu mudar das aves para os mamíferos alados que se movem pelo som. 
Ali os sons contornam novos mistérios, diferentes e inaudíveis, de tão agudos. 
Frequência sutil de captar. 

Ali, a vida inteira sussurra : 
Ê bichinha.
Vida é tarefa pra vida inteira. 
Faça favor - desça da esteira e vá viver.


* * *

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Olhos são portais (de novo)

Por isso tanta beleza em olhar no olho do outro:
É como se aproximar da porta de um universo

Por isso a reverência
Por isso o encantamento 
Por isso o silêncio 

Por isso a gente foge também 
Olha de lado
Desvia
Para pra respirar um pouco
Para pro susto poder minguar 

Para pra retomar a alma que já tava lá querendo ir porta a dentro, 
sem saber de nada, 
sem medir medidas da razão.


* * *

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Bruxas

Quando o céu parece baixo demais e todos os passos, acelerados,
Quando a rotação da terra não nos chega nos nós,
Quando todos os pássaros estão ausentes, 

Ciganas e feiticeiras, dançamos. 

Riscamos o ar com a ponta dos dedos e o chão com os pés, em círculos capazes de reestruturar a dinâmica da existência, em bamboleios sonoros sincronizados com a matéria constitutiva do universo. 
Mergulha-se no vento como quem parte ao meio todo um mar, como quem sabe da densidade de todos os oceanos. 
Como quem domina todas as leis da física e pode por isso superá-las. 
E cria, a partir delas, jeitos novos e lentos para existir no agora. 

Reconhece-se uma irmã pelos olhos e pelas mãos:
Tudo nela dança. 



P.s.: 
Não há domínio sobre lei nenhuma, 
e não há mística maior que dançar a vida e o que nela há pra dançar.  
Nada está sob controle porque tudo dança.



* * *

domingo, 22 de outubro de 2023

Olhos são portais

Olhos são portais. 

Essa frase é uma ideia que nunca continuei. 
Olhos são portais. 
Escrevi isso depois de olhar nos olhos de um amigo há muitos anos, e a frase ficou intacta. 
Parada no ar.
Resolutiva.
Achei que iria virar um poema, que fluiriam os outros versos logo em seguida.

Nunca vieram.

Talvez porque seja apenas isso.
Olhos são portais. 
E aí, parar pra pensar nos tantos portais que já estiveram diante dos seus, transparentes ou opacos, portas fechadas ou abertas, fluidez ou dureza, doçura ou mágoa.
Apenas isso. 

Ser gente, e ter a possibilidade de atravessar essa existência estando diante de outros olhos já é coisa muito obtusa, e nisso aí não tem poema que chegue, nem letra de canção nem instrumental que vá lá no que é.
 
Bom.
Até que tem, mas vá lá : 
não é lá a mesma coisa. 


* * * 

domingo, 17 de setembro de 2023

Flecha

Quando eu fui
Já era assim
Uma flecha que partiu
Parar não pude
Tarde demais 

Meu movimento 
não é de automóvel
Uniformemente variado
Conectado
Engrenado 

A seta que sou 
Já carrega em si 
Início e destino final
Avenida sem sinal
Cometa em órbita astral 
Marchinha no carnaval
Passarinhada no milharal
O mar e seu sal 

Partiu a flecha, pois
Imparável 
Irrevogável
Irreparável
Inconciliável
Partiu

P a r t i u  -  s
                       e



* * *

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Seca

Coragem é perfurar o céu

Galho em riste rasgando o azul
As últimas folhas secas 
amarelando o setembro
E reluzindo o sol de cada um 

Coragem é tremular ao vento

É envergar no temporal
É ranger, flexível 
E chicotear de volta o que vem
É reconhecer que o açoite de você não vem

Coragem é traduzir a luz em fogo

É soltar no mundo a mágoa
Se diluir em sonho e olhos d'água 
Descobrir-se nascente e foz 
onde a vida deságua


* * *

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Imagens oníricas

Os delírios 
do meu sonho 
são como seta
caminho traçado 
na borda
gravura da reta 

Espiral 
De trilhas 
oníricas
Imagem
Do pó 

Pista bordada 
de sonho
Apontamento
Do nó 

Intervenção do divino
no corpo :
Entrelaçar

Do desejo 
abafado na sombra
O despertar 

Vejo cores minhas e suas
Diluídas no carrossel 
Flecha de afetos gigantes 
Rede lançada no céu 

Quantos bordados 
de luz e de sol
Inda iremos captar ?

Manifestar no mundo
Mudança
Saber pra onde lançar o olhar 

Se eu sonhar contigo, 
amigo
O sonho não é de um só 
É mistério 
É segredo do mundo
É sussurro de avó


* * *

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Saudade

Ensinaste-me com os olhos 
todos os mistérios da tua vida
Falar de corpo e gesto
Mistérios do mundo 
pra me ensinar 

O queixo no meu peito 
Olhos nos meus
E a gratidão 
pelos últimos ventos à janela 

Pelos cheiros do mundo 
a invadir as narinas breves e úmidas 
que tanto diziam na minha pele 
pela presença 

No encostar dos fios macios de pelo
Na abertura alegre da companhia 
sob o rendado da rede
No desfrutar silencioso 
e mútuo 
de todas as brisas refrescantes
De todos os pisos geladinhos 
E de todos os passeios no por do sol 

Fragilidade serena
E o entregar-se 
de corpo inteiro 
nas mãos da vida 

Nos últimos dias 
tudo o que você sabia 
quis me ensinar 

E eu 

"Preciso aprender 
os mistérios do mundo" 
pra te encontrar.


* * *


[ Para o meu companheiro não humano que se diluiu 
  na teia da vida em 21 de março 2023, 
  primeiro dia do ano novo solar . 
  Romeu, você está em todas as folhas 
  de todas as árvores, nas minhas lágrimas 
  e também nos sorrisos. 
  Obrigada por tanto. ]

domingo, 23 de julho de 2023

Brisa

Se o fogo encontra o sopro
Labaredas dos ares
Fornalha gigante se forma
Encontro de olhares 

Matéria divina se cria
Sempre nova invenção 
Como som da canção que se ouve
Por debaixo do chão 

Uma fissura no frio se abre
Umidez dos orvalhos nos vales
Como enchesses todos os lugares
Da brisa quente dos mares


***


[ para meus (vários, muitos) amigos e amigas de ar
  que potencializam minha existência de um jeito ímpar
  e oxigenam os meus dias ] 

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Flor

Tatuo a pele para lembrar que as tuas flores, em vão, eram sementes de prazer que não vingaram 

Que a pele, pelos eriçados, é a flor onde aflora o novo e camada de novos caminhos 

Que os caminhos, se me parecem tortos, é que são curvos feito rio, e se curvam montanha abaixo à procura de outras águas. 

Que as águas sempre se encontram.
Que o mar é feito de encontro.
E encontro é fazer do mar, pele. 

É da pele que faz-se o mar.



* * *

terça-feira, 23 de maio de 2023

Café

A gente faz amor por telepatia. 

Faz no fazer da ideia
No encontro dos olhos, 
que
linguagem secreta -
Desvendam o momento exato 
da concepção daquela coisa fluida e transparente que traçamos juntos. 

Juntos, dar à luz à portais pela luz dos olhos. 

No encontro encontrar o infinito do outro,  como quem esbarra na beira de um buraco de minhoca:
Imenso, impressionante, cheio de estrelas. 
Olhar e ver ali o universo. 

Ouvir do encontro uma palavra e ela catalisar um turbilhão de novidade dentro, cascata de palavras farfalhantes ao redor, oceano de vir a ser possível nesse lugar de potências. 

Um universo inteiro de linguagem capaz de recriar o mundo 
e refundar todas as belezas pelo som da voz. 

Dividir o café.
E fazer disso o ato sagrado que pactua nossa existência comum nessa existência.


*

sábado, 13 de maio de 2023

Lampejo

Os mapas que atravesso
As mãos que toco 
Evocam as melodias das tuas rimas 

Os mares que adentro
Os bares em que me sento
O rosto que me sorri 

As folhas das plantas novas que descubro
Os desenhos que me escapam no escuro
Os traços e as nervuras de tudo ali 

Distante miragem
viagem
Bobagem insistir



*

terça-feira, 18 de abril de 2023

Registro

Dentro de mim passou um rio
Fluxos de palavras e sons 
Bebeu todas as minhas águas
Que não se esgotaram
E ainda tenho as rotas traçadas
Marcadas na pele 

Se no meio do dia parar pra lembrar
Fluem de novo todas as fontes



segunda-feira, 20 de março de 2023

Pressentimento

Não saber. 
Não saber quando
Não saber o que
Não saber quanto 
Não saber se 

Não saber onde
Não saber como
Só saber que 


* * *

terça-feira, 14 de março de 2023

Arranque

Quando é que a dor 
basta no canto? 

Quando é que o encanto
Feito pranto 
Vem como manto

Dissipa o que é tanto
Quebra o quebranto
Inaugura o alento? 

Tanta amargura
Feita em canção
Se torna sustento? 

Perfura ternura 
Na tessitura 
De um lamento? 

Amplia paisagem
Destina a passagem
De um tormento?

Canção estrutura
Acaba a gastura
Desfaz a feiúra
Rasura e mistura 
a minha loucura
Aumenta a espessura
Da envergadura
E até captura
o meu pensamento


* * *

quarta-feira, 8 de março de 2023

Contraste

Às vezes tenho a impressão de que as coisas todas já foram cantadas.
Está tudo dito.
O mundo já manifestou todas as palavras humanas através dos séculos, em canções novas e antigas.
Nos poemas e nas prosas.
Não se inventa mais pólvora nenhuma. 

Está consumado. 

Enquanto deixo essa frase não inédita esfriar, tendo ela acabado de aparecer em mim, meus olhos param numa coisa curiosa:
Uma louva-deus, verde-esperança, em contraste com minha pá de lixo, vermelha-sangue. 
E ela pôs ovos na pá. 
Está pondo ainda. 
As mãos em prece. 
As patinhas de trás arrumam os ovos num aglomerado só, e as da frente limpam o rosto de vez em quando.  

Pois sim. 

As coisas humanas podem estar todas ditas, mas elas não são todas as coisas.


* * *

terça-feira, 7 de março de 2023

(An)danças

Um novo tempo
Tua linguagem
Que se instale
A tua graça 

A tua vida
Força e coragem
É boa nova
Que nos inunda 

Uma esperança
Chuva de graça
A água viva 
mora em casa 

Vê em cada palmo de chão
Corpo olhar expressão
Faz a beleza brotar
Em todo jeito e lugar 

Em cada gesto e no pão
Em cada flor um irmão
Cuida pra vida girar
Tempo de andar o andar

* * *

Útero

Navegar nas ondas da dor
Existir num corpo outrora sólido 
Agora liquefeito no entorno de um ser mais bruto
Muscular
Elástico 
Enlouquecido 

Mais um ser vibrante 
em vermelho-sangue
Protesto da vida
Desejo de multiplicação frustrado 
em esfacelamento 

Endométrio 

Tão fino
Tão nada
Tão rasgante 
Tão rio que atravessa o mundo e deságua em dor 
Tão parante de tudo
Tão primordial 
Tão bisturi
Tão nó 

O refazer dos ciclos
Traz sempre 
A metáfora lógica : 
A maior dor 
É sempre dentro

* * *

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Reza

Ensina-me 
a pôr em prática
Dentro desta 
estrutura burocrática
A ética 

Dá-me didática
Para estremecer a estática
Engendrar neste muro frio
fissuras táticas
Estratégicas


***

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Romeu

Preciso, diariamente, sair pra passear com meu cachorro.
Ele que me leva.
Fica na beira do portão, no fim da tarde, até que eu apareça por lá carregando seu passaporte para o portal mágico: a coleira.
E ele fica igualmente feliz todas as vezes e em medida tamanha, que aprendi a também me botar feliz e tranquila a passear com ele pela rua. 
Ali, só há o instante. 
Ele me ensina a olhar de novo e de novo para cada matinho do caminho, me aponta como são preciosos. 
Me pergunto se foi nessa brincadeira que aprendi a gostar de planta que nasce na beira da estrada, que pode levar todo dia uma chuvarada de uréia que não morre. 
Que brota sem precisar de terra adubada ou de muita água, e mesmo assim é capaz de produzir beleza. 
Preciso, como preciso, todo dia olhar para essa serra e lembrar do seu nome - Laíla - e procurar nela os contornos femininos esculpidos pelos deuses. 
Preciso olhar pro resto de sol que emerge por entre os vales ou para as estrelas ou para a lua, pra como o tempo está, pra como a vida apenas é. 
Romeu me ensina a meditar quando no meio do passeio ele atravanca abruptamente e quase me faz cair no chão, por cima dele. 
É preciso estar atenta. 
Sem estar tensionada ou alerta. 
Isso não.
Apenas presente.
Olhar pros matinhos e ver que eles são jardim. Lembrar que essa beleza esquecida também me merece os olhos e os afetos. 
Lembrar que o vento bate no pescoço de um jeito muito humano quando eu amarro o cabelo. 
Lembrar que as coisas tem cheiro e que a mata tem som.
Tem sons. 
Que os sapinhos e os grilos estão lá. 
Que folha de árvore tremulando faz um barulhinho reconstrutor das possibilidades de vida. 
Que as palmeiras, que eu nem gosto tanto assim porque não fazem tanta sombra fazem um trabalho magnífico de recortar o pôr do sol. E de ajuntar maritacas. 
Prestar atenção que as cigarras são várias, e que cada uma diz uma coisa diferente sobre o dia. 
Hoje tem uma ali dizendo que vai chover.

* * *

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Clínica

Sonhei um dia
Os passos no quintal
Delírio produzido 
Em desacordo com a ciência 

Um sonho bom
Feito um cartão postal
Aquilo que sabe 
Antes de cada experiência 

Dormi, havia
Flores no varal
O corpo inteiro entregue 
Relaxado sem urgência 

Se acordei
Eu nem me lembro bem 
Já não implico mais
Com essa minha inconsistência

A sua clínica 
Jogada na beira do mar
Força alquímica
Espelhada no céu do olhar 

A sua química
Amplificada no corredor
A voz tão tímida
Embalada no cobertor 



* * *

sábado, 7 de janeiro de 2023

Cantiga

As canções do dia
Meu anúncio de promessa
De tempo que se inicia 
De andar sem ter mais pressa 

A manhã renasce 
Quando a noite faz-se em dia
Um farol que rasga o manto
Alegria que regressa

Uma canção antiga 
Ficou no meu passado
Sigo cantando na vida
Girando, girando
Sem ter mais culpado 

Uma canção amiga
Mudou o meu andado
Sigo aprendendo a lida
Girando, girando 
Sem tanto cuidado 

Minha canção abriga
Um manto mais trabalhado
Sigo tecendo cantiga
Caminhando tonto
Mais despreocupado 

* * *

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Lista

Saber ocupar :

As mãos e o corpo
nas tarefas do presente

Guiar as fugas 
que se fazem na mente 

Quebrar o espelho 
conscientemente

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Resolução de ano novo

Vamo dormir,
Minha gente
Que a manhã 
Vem rente

* * *

Visita

Encontrar 
na humanidade
a irmandade
Encontro 
na 
radicalidade
da diferença 

Romper 
a membrana 
do útero meu
Ver-me fruto
da dança 
de muitas crenças 

Ouvir as vozes 
profundas de ser
Som que ecoa 
debaixo de muitas águas 

Crer na doçura
Saber
A voz do silêncio
habita nas casas 

Espírito, espírito
O vento como fogo
Que quebra as ondas fortes
Que faz seguro o porto 

Espírito, espírito
Início, água e corpo
Atento às dores fortes
Me faz olhar o novo 

Espírito, espírito
Quem lembra à vida o gosto
Revira meus caminhos
Me faz mais amplo o voo


* * *

domingo, 1 de janeiro de 2023

Dança

Findados os tempos de sequidão, o querer latente da terra é de se umedecer.

Os ares ásperos de sol que precedem estes quereres deixam as células sensíveis de todo um ecossistema árido mais que atentas - imóveis - e por isso mesmo em ponto de bala. 

A superfície das cascas aguarda ávida uma notícia só, parâmetro do desejo de enverdecer : a primeira chuva. 

É curioso. Os seres habitantes do cenário da seca, tão sóbrios e sábios, resilientes e estratégicos, ríspidos e aparentemente fechados em si, cascas grossas e espinhos, caducifólias e resistentes ao fogo, rainhas e senhoras da sobrevivência, depois de tanto aprenderem a se conter, feito mágica, derretem a dureza do ser no primeiro anúncio do escorrer das gotas. 

E antes disso, preparam em si o desejo de se lançar à trabalheira desgraçada da renovação : rumas e rumas de folhinhas e mini galhos novos, mini coisas brotando em explosão de fragilidade, numa abertura coletiva para de novo voltar a ser origem, criança, mata virgem. Adolescer. 

Depois de meses de se deixar perfurar de luz, do desabar impetuoso do céu sobre o chão, do esmagamento ardente do sol sobre o húmus, depois do consumir das matérias, a água abre espaço e rege a ação oposta. 

A penetração agora é no tecido do céu, vida verdejante contraposta ao azul total, avançando no corpo do ar. 

A mata cresce, devolve a si mesma seu volume, sua forma e sua abundância, empurrando de volta o que encolhera e ganhando espaço dentro de si. 

A vida rasga mata a dentro.

Rompe, desde a raiz , seu silêncio, e de bem dentro engendra a resposta à canção do sol : dança.


* * *