terça-feira, 28 de abril de 2020

Despertar

Ele tinha seis ou sete anos quando a viu pela primeira vez. À época, não saberia lhe dar nome ou entender bem de onde viera. Foi um conhecer que se completou através dos tempos, em momentos fragmentados que soube colecionar.

Hoje aquele dia era um lampejo frouxo de memória que se esvaía rapidamente, mas que lhe assaltava recorrente, como quem reafirma e reforça e repete a tabuada ou um provérbio que quer fixar: era importante.
Aquele flash, mesmo hoje tão distante, se autoafirmava como eixo e pilar, como pedra sólida do que viria a ser e de como viria a ver...

*

Estava na sala de aula, a classe de alfabetização.
Nas paredes o colorido de um ano inteiro a conhecer a palavra e seu universo, os personagens da Casinha Feliz a convidar para a dança das letras.

Era uma escola freireana, graças a Deus.

Tinham, coletivamente, escrito um livro, cada coleguinha com uma história e um desenho. Estavam no fim do processo e chegara a hora de dar um nome ao livro, ia começar a votação. A professora conduzia o momento com atenção e cuidado: escrevia as sugestões de todos no quadro à giz.
Ouviu os colegas sugerirem vários títulos e achou vários bonitos.
Não lhe ocorria nenhum, mas de repente se ouviu dizer : "Nossas Idéias", e já era ela ali surgindo.

Na hora do voto foi ficando mais e mais surpreso quando, pouco a pouco, os colegas acolheram aquela expressão, e aquele virou o nome do livro no fim.
Parecia que estavam sendo todos atravessados por um comichão, ele pelo menos estava.

Enquanto a professora colocava cada tracinho ao lado do título, cada um um voto, ela foi lhe aparecendo. Ganhou forma, textura, rosto e voz. Suas mãos delicadas lhe abriram a primeira porta.
Sua voz lhe soprou uma coisa que na hora não podia entender de todo, mas que era uma iluminação e um escândalo da mente infantil : Nossas idéias.

Soou misterioso, mas sentiu uma cócegazinha na barriga... não sabia o que era mas era bom.  Novo sopro: criança pode ter idéia, nossas idéias ...

Como seria o nome dela, a dona daquela voz?
Mal sabia que a encontraria ainda tantas vezes, sonho acalentado de muitos.
Sonhou também, ali criança naquela primeira visão; e sonhava agora, homem feito, mesmo quando ela lhe era tirada das mãos...

O nome da moça era Democracia, e escolhera a Escola como primeiro lugar pra morar.


* * *

quarta-feira, 22 de abril de 2020

O anúncio de uma flor

( Queria te fazer um filme mas um filme não sei fazer
por isso te escrevo um poema para não deixar de dizer ... )

Abriu-se minha flor de Abril
e nisto é que o mundo floriu
seu olhar que derrete o frio
põe as cores no cinza mais vil

Agarrada no seu sorriso
está a linha do horizonte
de covinha a covinha uma fonte
quando ri é o sol  por detrás do monte

Em seus cabelos infinitos
quero eu me pendurar
pra tecer a teia da vida
pra gente poder se encontrar

Alguém viu?
Abriu-se minha flor de Abril!
Como pode uma flor ser também sol?
É segredo seu encanto, há de ser girassol


*
(para minha amiga Sarah, pelos seus 24 anos)


quinta-feira, 16 de abril de 2020

O não ter

É curioso este estado de não ter que.
Os dias me atravessam sem que eu os atravesse, escorrem por cima de mim.
Tudo assim suspenso no ar e estruturado pelo grande e invisível ponto de interrogação.

Não tenho que acordar cedo, então não tenho que ir logo dormir.
Não tenho que sair, então não tenho que me arrumar para.
Não tenho que parecer feliz, e aí me parece que posso ser triste.
Como sempre fui, de quando em vez.

Mas a coisa mais curiosa são as contradições que brotam pela ausência de ter que.

Não tenho que cuidar do jardim, e lá estou eu cuidando dele todos os dias.
Não tenho a obrigação de ler milhões de livros, e eis-me aqui num período de tanta leitura que lembra minha adolescência.
Tenho todo o tempo que eu quisesse para flutuar nas redes sociais, mas não as quero, e flutuo em mim.

Quero estar invisível no meu casulo. Crescendo por dentro sem pressa de romper.
Ignorando de propósito a imagem feia e a gosma que possa ser visível de um processo que é invisível e meu. Mas que também é de tantos outros, é do mundo.
Agora podemos todos hibernar.

O que de sólido surgiu no meio do não ter que, é que me parece agora haver algum tempo para ser. Adoeço ou adolesço?
Ou adormeço?

*

quinta-feira, 2 de abril de 2020

A menina

Tenho gastado tantas horas a flutuar em mim mesma que abriu-se em mim um buraco no meio do estômago. Acordei e ele estava lá, o estrago feito e uma dor que me queimava - como se a menina de dentro tivesse tido a brilhante ideia de acender uma fogueira pra afastar o tédio e a escuridão a que lhe submeti. Ora como se.

O fogo cresceu, espalhou, e me fez saber o que é sentir a palavra dor  na sua versão encarnada, invadindo todos os espaços e arrancando a raiz do pensamento.
Por alguns minutos, vivi a palavra e ela habitou em mim, com suas três letras afiadas:
dor. dor. dor.

Passado o susto e reestabelecida a pressão sanguínea, o fato que restou foi o de que agora há uma saída para a clausura da menina.
De lá ela vê o céu, se espreme toda pela fresta e sai pra passear.
Me olha como se nada tivesse feito e sem sombra sequer de culpa.
Anda feliz da vida e até planeja transformar o buraco que fez em mim num jardim de inverno.

Quanto a mim, tomo omeprazol e como brócolis como se não houvesse amanhã.


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