quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Lua

Escrevo para traduzir em palavras a loucura de dentro.
Teço a teia dos versos para nela deixar registros de que o caos também pode ser são.

As conexões a princípio parecem esparsas e aleatórias, as palavras soltas, vãs.
Mas continuada a trabalheira, quando os contornos ganham definição, e os versos ganham pares, e quando salpicados de rimas e pausas e ritmo, lá estou eu, inteiro.

Às vezes escancarado, numa denúncia auto-pronunciada de minha miséria e fragilidade, das minhas inconstâncias, devaneios e desvarios. Às vezes sutilmente oculto numa estória de outrem. Às vezes falando de tristeza e feiura, às vezes falando da beleza do mar. Ou da lua.

Escrevo para me lembrar de quem sou ou quem fui à cinco minutos ou à cinquenta anos, para ter um jeito de me dizer que os caminhos percorridos tinham beleza e cor, e que as escolhas foram quase todas feitas na lucidez do amor, este livre espírito em que habito.

Escrevo às vezes em desespero, e enquanto os garranchos rápidos se organizam e tomam forma e as sílabas encontram seus lugares, me encontro. Esqueço a urgência dos dias, e me lembro que é mais urgente sentir o sabor de cada um deles.

Enquanto escrevo me lembro que tenho direito de olhar o céu, de me encantar com a lua cheia e de me deixar enluarar e nadar na luz dourada. De suspirar enquanto olho fixamente para ela, como se olhasse em seus olhos. Me lembro que é permitido subir num banquinho ou num cavalete e ficar na ponta do pé só pra ver ela nascer...

A lua hoje, deitada no azul
pontilhou de luz o meu chão
abriu as portas da emoção
despertou do sono o coração

Por entre as folhas e galhos e nuvens
sorriu para mim num flerte e piscou :
eu vi seus cílios de cetim
soprarem um beijo pra mim


*

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Maré

Não posso ser transparente, o rio de águas claras a correr sobre as pedras.
Minhas águas são turvas e fundas, e obscuras.
Tenho camadas.

Preciso me guardar pra mim um pouquinho, como a Monalisa e seu segredo sorridente:
Cores sóbrias e mãos sobrepostas e uma mensagem encoberta.

Nas curvas sombrias, alguma pedra onde eu possa esconder um peixe ou uma concha,
onde me guardo e aguardo.
Sob o cascalho e os seixos, o inesperado.

Gosto de ter um canto secreto para guardar um mistério que nem mesmo sei,
mas que sempre invento e reservo como sendo tudo de mais precioso em mim.

Tenho desejos.
Ei, psiu!
Tenho desejos.
Mas não faça alarde!

Me parece um tanto esquisito dizê-los, pois escapam de mim fortuitos,
donos de si e flutuantes.
E vão-se embora.
Sempre voam e vão.

Somem em minhas espumas.

Não posso ser tão transparente, nem tão clárida, tenho que ser louca.
Em minha loucura tudo cabe em mim.

Bravio que sou, até o que não me cabe de algum jeito me atravessa,
de algum jeito me conserta, a seu jeito me transforma.


*