segunda-feira, 25 de março de 2019

A cadeira vazia

Olhei para o lado e te vi, mesmo ausente.
Quis buscar os teus olhos, pendurei tua imagem na mente.
Quis te contar tanta coisa!
Comentar sobre o tempo, reclamar do trânsito, dividir a angústia dos dias...
Cheguei em casa e quase ouvi o que tu dirias sempre, que deixasse os chinelos na porta, e lá os deixei.

Eu estava indo bem.

Quando embolei a camisa e estava para jogar a calça no sofá, foi que a coisa toda desandou.
Primeiro o nó, o embargo e a falta do ar.
O mundo que girou.
E foi como o colapso daquela barragem que passamos tanto tempo conversando mês passado.

Desmoronei.
Sucumbi.
Me esvaí.

Eu não tinha estruturas, e a tua ausência era chuva demais pra conter...
Fui amassando o barro, encalcando terra sobre terra até não poder mais me manter.
Disseram que eu estava sendo forte, e eu até vesti o disfarce.
Eu até pensei mesmo que estava tudo bem.
Cuidei dos preparativos, abracei quem veio nos ver.
Balbuciei alguma coisa sobre sobreviver à dor.

E eu sobrevivi.

Ela era tanta que me deixou dormente assim por quase um mês.
Passei uns dias fora, pensei em ti e na vida, e até pude agradecer.
Até voltei ao trabalho.
Mas quando cheguei em casa, e estava pra jogar a roupa amassada no sofá, foi nesse dia que tudo começou a me atingir de verdade...

As coisas poucas que dizias durante o jantar.
A companhia quieta aos programas de TV.
As palavras muitas que trocávamos em um só olhar ao ouvir uma notícia esperada.
Os resmungos sobre o preço do feijão.
Os fios de cabelo acumulados no ralo.
A pilha de roupa suja sobre a cadeira no quarto.

A roupa se foi, assim como os cabelos, os resmungos, os olhares, a companhia e as coisas.
O que me resta é prato, TV.
Alguma notícia, feijão.
Ralo.

E a cadeira vazia, metáfora de mim.

*

domingo, 17 de março de 2019

Gargalhada

Entre as mais lindas cenas que o olho é capaz de ver, tenho uma preferência por assistir aquele instante sutil em que nasce o sorriso.
Se pudéssemos colocar em câmera lenta, veríamos uma estranha energia luminosa se espalhando por entre os tecidos da face, as pequenas explosões de fluxo sanguíneo produzindo rubor, a aquarela em que se transforma aquele rosto que ri.
A composição inteira parece líquida, em uma transparência agitada pela qual se entrevê a alma.
Parece até um descuido do corpo deixar tudo assim tão às claras.
Uma fresta se abre, e nos conectamos ao outro pelo fio prateado que une os olhares.
Risonhos, os olhos miúdos se contraem pela ebulição do sorrir, e se encontram e se compreendem nesse lugar etéreo em que nos fundimos no prazer da semelhança,
do encontro.
Transcendência.
Nem mesmo os meio-sorrisos, os risos contidos pelas regras do lugar ou pela etiqueta social conseguem deter a energia que inevitavelmente fui pelos capilares mais finos da pele, como um relâmpago a se espalhar no céu.
Quando a boca não gargalha, a energia liquefaz o olhar, e a pele se faz escarlate.
É um pequeno milagre, uma semicoisa.
Mas toca o oceano do ser, e reverbera em mim em ondas infinitas.

*