Quando a cunhada gritou pelo seu nome, nem imaginava o que poderia ser.
Talvez fosse pra ajudar no almoço, temperar o feijão ou provar o sal da carne
que sempre lhe era servida fria a sal, consequências da hipertensão que a idade
avançada fazia agravar. Em plena terça-feira, ué, só podia ser isso.
"Já vai, já vai!"
Chegou na cozinha da casa e estranhando o chamado não vir de lá, foi
indo pra porta da sala. E quando viu, ele estava lá, quase irreconhecível
depois de tantos anos. Mas quando o olho bateu no seu, o arrepio na espinha fez
qualquer sombra de dúvida se dissipar. Aquilo lá que sentia, resquícios dos 18
anos que viveram juntos, ainda fazia as pernas bambearem e o coração querer
bater mais apressado. Mas não batia não. Tinha aprendido a adormecer o danado
do sentimento que tanto lhe fizera sofrer de alma, e de corpo também. Lembrava
dos vergões arroxeados que aquelas mãos tatuavam em sua pele mais moça, de seu
feio reflexo no espelho, os olhos inchados do choro ininterrupto daqueles
dias... Enquanto via Antônio entrar, as imagens daquilo que passara lhe vinham
à mente feito um filme daqueles em preto e branco em videocassete, como se
fosse não mais que telespectadora daquela história, um passado tão triste e
distante que preferia fingir não ter vivido.
***
Não aguentava mais de tanta saudade. De manhã, quando fora ao mercado,
mais uma comadre lhe perguntara pelo marido, que tinha ido pro Sul do país já
iam completar três anos, e que desde então mal mandara notícias de como andava
a vida lá por São Paulo.
Cada vez que alguém lhe perguntava por Antônio ela sentia um aperto
enorme no peito, uma vontade escandalosa de ter seu homem por perto, de fazer
os sete filhos terem a felicidade de crescer tendo a figura paterna presente. A
vizinha da frente vivia dizendo: "Eita, Graziella! Olha que criar filho
homem sem pai por perto num dá certo. O menino aviada mesmo, tu abre o
olho!".
Foi então que, juntando a saudade com a encheção de saco da vizinhança,
acabou por decidir ir embora: vendeu tudo e mandou-se pra São Paulo atrás de
Antônio, ela e três das crianças. As outras deixou com os familiares no Ceará,
na promessa de ir buscar em breve, tão logo a vida por lá se aprumasse. Quando
chegou na rodoviária depois de dias de estrada poeirenta, achou que ia
encontrar um sorriso feliz e um abraço daqueles que só Antônio sabia dar,
entretanto o que viu à sua espera foi uma figura fria, que lhe carregou as
malas entre meias palavras e monossílabos proferidos em resposta às perguntas
que ela, entusiasmada com a grandeza da capital, lhe fazia ininterruptamente
durante o caminho até o lugar que ele havia arrumado pra ficarem: uma casinha
no interior do estado, até boazinha.
Mas boa mesmo, a vida não era não. Viviam com dificuldade, ela costurando
pra fora e ele trabalhando de pedreiro onde dava. Mas ia vivendo, ao menos
tinha o marido do lado. Só que aí um dia Antônio chegou embriagado em casa,
falando alto, xingando as crianças, uma brabeza só. Aquele ali num era seu
homem não, não podia ser. Quando ela tentou acalmar o marido, o traste deu-lhe
na cara, e vendo-a chorar de dor puxou-lhe os cabelos e a arrastou até quarto.
A fez cumprir os deveres de esposa entre xingamentos e bofetadas que menos
doíam que ouvir seus pequenos batendo na porta do quarto, berrando pela mãe. Desde então, sua vida virou um inferno.
Trabalhava que nem doida durante o dia:
casa, comida, crianças e encomendas de costura. À noite, as surras de Antônio,
quase sempre bêbado, lhe faziam chorar feito criança. Vez ou outra ele, lúcido,
lhe pedia desculpas e prometia que ia largar o vício. Ela coração mole,
perdoava e vivia feliz da vida umas duas, três semanas, aí ele aparecia
embriagado novamente e ela se desfazia em lágrimas.
Certo dia uma mulher morena veio à sua casa, e vendo as manchas que
Graziella trazia na pele, adivinhou a situação. Dizia-se ex de Antônio, tinha
passado pela mesma situação que ela há tempos atrás, naquela mesma casa em que
agora ela estava. Lhe aconselhou a deixar o homem que aquilo não era vida que
prestasse, mas ela nem ligou.
Tempos depois Antônio chegou em casa dizendo que ia passar uns tempos no
Ceará: ver os parentes, matar a saudade da terra... Nunca mais voltou.
O tempo foi passando sem cartas nem cartões de Antônio, e Graziella suando
sangue pra criar os filhos sozinha, até que o Carlos colou na dela. Um negrão
alto, daqueles pra ninguém botar defeito. E queria casar com ela, criar os
filhos dela. Acabaram se amigando. E ela apaixonou-se aos poucos por ele,
encontrou um pouquinho de paz. Devagarzinho foram construindo a vida: ela
mandou buscar as outras crianças no Ceará, os filhos menores já chamavam Carlos de
pai... Conseguiu ser feliz. Foi algumas vezes na terra natal, viu os parentes,
abraçou os amigos e preferiu fingir que Antônio não existia.
Agora, aposentada, vida mais tranquila, os filhos já grandes queriam
notícia do pai de verdade, e tamanha foi a insistência deles que ela acabou por
pegar um avião pro Ceará. Tinha ao menos que descobrir se a criatura não tinha
batido as botas, mostrar a foto dos filhos pra ele, ver se a cara do infeliz ao
menos tremia...
***
Olhando pela janelinha da aeronave, ela desenterrava um filme que há
muito não via, e só interrompeu a sessão quando a voz da moça soou pelos
autofalantes. Apertou o cinto, respirou fundo e pediu a Deus que a ajudasse no
que ia fazer. Adorava estar no Ceará de novo, mas de todo jeito aquilo lhe
reabria feridas na alma que doíam demais pra serem ignoradas...
Enfim o avião parou, e ela teve de se levantar. Desafivelou o cinto,
refez o rabo de cavalo e esticou as dobrinhas do vestido vermelho e preto, o
seu preferido. Ajeitou os óculos, pegou a bolsa e entrou no túnel. Ainda eram 4
da manhã e do lado de fora do aeroporto o sol ainda não se via, mas o céu já
era clarinho, clarinho.
De repente, ficou feliz: ia ver de novo o sol nascer na terra do sol.
(...)