segunda-feira, 22 de julho de 2013

Depois das onze

A noite caiu e você já dormiu.
O quê que eu vou fazer agora?

Eu faço um café e tomo de colher
Mas já vi que essa noite não passa.

O meu celular
Já pirou de vez
O autofalante quer a sua voz

Então diz aí, o que é que você fez pra eu derreter assim,
 falando a sós?

Eu viciei no teu timbre, essa atmosfera musical...
Acostumei com a tua voz.

A tua ausência não é natural...

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Pausa pra poesia

Eu só queria dizer de um jeito menos clichê que tudo me lembra você.

Até preferia que o verso não rimasse,
mas se a rima não vingasse
talvez meu compasso desandasse
na batida do teu ser

Ah, como é que pode ser?
viver você é ver, sentir,
é respirar pura poesia

E mesmo estando longe,
só lembrar de ti refaz
um pedaço da minha alegria

O quê que eu posso dizer pra descrever o bem que me faz a tua companhia?

Bem que eu queria descobrir
nesse teu jeito de rir
a tal receita que me contagia

Você me faz escrever mil abobrinhas de amor -
E como é que fica minha aversão à flores e corações?

E essa história de pensar um futuro, de querer rodar o mundo com você 
- só por estar com você -

Parou para pensar que nada disso faz sentido e que tudo isso meio que foge à razão?


Às vezes demora pra perceber que um mundo tão racional é comandado
- de quando em sempre -
pelo coração...

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Reticências

Um dia irei escrever
algo feito uma canção
que ressoe feito um samba
e que leve no refrão
entrelinhas, entre letras
um dicionário do olhar,
um tradutor da emoção...

Há de ser inconfundível,
desde o primeiro acorde que formar
Há de beijar, a cada pausa
o ouvido de quem escutar...

Há de ser daquele tipo que só se ouve sem pressa,
que é pra tua alma travessa em mar de calma navegar...

* * *

sábado, 23 de março de 2013

Exílio


Seus olhos em nada creem do que veem: viram demais.

A boca, antes cheia de orações, trazia agora as marcas da hóstia amarga que o papa lhe fizera deglutir em cada centímetro do corpo: nenhuma palavra, nenhum sorriso. Só cicatrizes.

Quis seguir os passos do mestre, e lhe feriram os pés.
Jurou que seguiria de suplício em suplício as palavras que lia, mas tinha apanhado tanto que os olhos já nem podiam ver nitidamente a face de seu algoz.
A mente, outrora firme em seguir até a morte por seus ideais, fora desconjuntada pelas sucessivas descargas elétricas nas fontes.  Acabou por traí-los: os ideais, os companheiros, a si mesmo e ao povo brasileiro.

Agora longe, em flashes revivia os momentos de terror passados no Brasil.

 “Quando eu venho para cá, deixo o coração em casa” – dizia o monstro a lhe torturar. As vozes ecoando em sua mente perturbavam sua existência, lhe faziam desejar a morte ao invés da vida não vivida que tinha longe de casa.

Sentia falta da sua terra, de sua gente, de seu povo.
Fora por eles que lutara, e desejava desesperadamente voltar para lá.

Depois do que vivera, não rezava mais. Nem cria em mais nada.  Em seu cérebro só havia lugar para o desvario.

E para as vozes. Ah, as vozes.

“Traidor! Traidor do Brasil!”
“Beija a mão do papa, beija!”

Caminhou até a árvore que observava havia dias, a corda escondida no casaco de lã.
Subiu, fez o nó. Morreu sob os galhos gélidos do inverno europeu.
Sem pátria, sem chão, sem fé.
E finalmente esqueceu as vozes.

Entretanto, sua voz ainda ecoa junto às milhares de vozes que cantam o hino nacional, cada vez que o cantam neste Brasil de tantas sombras passadas que ‘inda acinzentam o presente...

“Quando os regatos límpidos de meu ser secarem, minha alma perderá sua força. Buscarei então pastagens distantes, lá onde o ódio não tem teto pra repousar. Nos dias primaveris, colherei flores pro meu jardim da saudade. Assim externarei a lembrança de um passado sombrio.” Frei Tito.

 *

sexta-feira, 15 de março de 2013

Instantes que pagam o dia


Um dia, sozinho pensando na vida
Buscava a cura pra sua ferida
Enquanto mantinha os olhos fechados
Garimpava sonhos, tesouros guardados

Lembrava os detalhes bonitos da estrada
Semicoisas indescritíveis na retina gravadas...

Como em filme, reviu mais um pôr do sol à sua frente
E em êxtase, as cores da aquarela pintada na mente

Enxergou o encontro do rio com o mar
Tantos tons de verde e azul
Que mal podia acreditar

Viu a lua branca e linda
Um mistério que bem queria desvendar
Mas quando olhava para ela, envolta em mistério,
Simplesmente deixava-se estar...

Viu sorrisos, mil sorrisos
E o riso não pôde evitar
Lembrou a beleza, tão pura e plena
Que é ser um olhar em fusão a outro olhar

Sentiu sob os dedos
O pelo macio do cachorrinho de estimação
O rabinho a balançar
A lambida na mão!

E em cada cantinho escondido no mundo, em cada silêncio ou até na algazarra, na gotinha de chuva que pinga no chão, foi encontrando momentos que, diante das desventuras da vida, agiam como um bálsamo a aquietar a alma a aflita. Detalhes que pareciam ter sido postos na estrada com a exclusiva intenção de trazer um sopro de ar a quem traz a alma sufocada no peito, provas do amor divino a estes simples mortais que complicam tanto a própria vida que esquecem como é simples viver... 

E olhou para o céu – se pintou de azul,
Sentiu o cheiro do vento – de verde, de flor
E andou pelas ruas a fotografar
Lentes tão profundas – o seu próprio olhar...

Viu um riso de criança, respirou o restinho de sol do fim de tarde e seguiu andando, cantarolando por dentro uma canção que gostava...

sábado, 9 de março de 2013

graziella


    Quando a cunhada gritou pelo seu nome, nem imaginava o que poderia ser. Talvez fosse pra ajudar no almoço, temperar o feijão ou provar o sal da carne que sempre lhe era servida fria a sal, consequências da hipertensão que a idade avançada fazia agravar. Em plena terça-feira, ué, só podia ser isso.

"Já vai, já vai!"

    Chegou na cozinha da casa e estranhando o chamado não vir de lá, foi indo pra porta da sala. E quando viu, ele estava lá, quase irreconhecível depois de tantos anos. Mas quando o olho bateu no seu, o arrepio na espinha fez qualquer sombra de dúvida se dissipar. Aquilo lá que sentia, resquícios dos 18 anos que viveram juntos, ainda fazia as pernas bambearem e o coração querer bater mais apressado. Mas não batia não. Tinha aprendido a adormecer o danado do sentimento que tanto lhe fizera sofrer de alma, e de corpo também. Lembrava dos vergões arroxeados que aquelas mãos tatuavam em sua pele mais moça, de seu feio reflexo no espelho, os olhos inchados do choro ininterrupto daqueles dias... Enquanto via Antônio entrar, as imagens daquilo que passara lhe vinham à mente feito um filme daqueles em preto e branco em videocassete, como se fosse não mais que telespectadora daquela história, um passado tão triste e distante que preferia fingir não ter vivido.

 ***

    Não aguentava mais de tanta saudade. De manhã, quando fora ao mercado, mais uma comadre lhe perguntara pelo marido, que tinha ido pro Sul do país já iam completar três anos, e que desde então mal mandara notícias de como andava a vida lá por São Paulo.
    Cada vez que alguém lhe perguntava por Antônio ela sentia um aperto enorme no peito, uma vontade escandalosa de ter seu homem por perto, de fazer os sete filhos terem a felicidade de crescer tendo a figura paterna presente. A vizinha da frente vivia dizendo: "Eita, Graziella! Olha que criar filho homem sem pai por perto num dá certo. O menino aviada mesmo, tu abre o olho!".
    Foi então que, juntando a saudade com a encheção de saco da vizinhança, acabou por decidir ir embora: vendeu tudo e mandou-se pra São Paulo atrás de Antônio, ela e três das crianças. As outras deixou com os familiares no Ceará, na promessa de ir buscar em breve, tão logo a vida por lá se aprumasse. Quando chegou na rodoviária depois de dias de estrada poeirenta, achou que ia encontrar um sorriso feliz e um abraço daqueles que só Antônio sabia dar, entretanto o que viu à sua espera foi uma figura fria, que lhe carregou as malas entre meias palavras e monossílabos proferidos em resposta às perguntas que ela, entusiasmada com a grandeza da capital, lhe fazia ininterruptamente durante o caminho até o lugar que ele havia arrumado pra ficarem: uma casinha no interior do estado, até boazinha.

   Mas boa mesmo, a vida não era não. Viviam com dificuldade, ela costurando pra fora e ele trabalhando de pedreiro onde dava. Mas ia vivendo, ao menos tinha o marido do lado. Só que aí um dia Antônio chegou embriagado em casa, falando alto, xingando as crianças, uma brabeza só. Aquele ali num era seu homem não, não podia ser. Quando ela tentou acalmar o marido, o traste deu-lhe na cara, e vendo-a chorar de dor puxou-lhe os cabelos e a arrastou até quarto. A fez cumprir os deveres de esposa entre xingamentos e bofetadas que menos doíam que ouvir seus pequenos batendo na porta do quarto, berrando pela mãe.            Desde então, sua vida virou um inferno. 
    Trabalhava que nem doida durante o dia: casa, comida, crianças e encomendas de costura. À noite, as surras de Antônio, quase sempre bêbado, lhe faziam chorar feito criança. Vez ou outra ele, lúcido, lhe pedia desculpas e prometia que ia largar o vício. Ela coração mole, perdoava e vivia feliz da vida umas duas, três semanas, aí ele aparecia embriagado novamente e ela se desfazia em lágrimas.
    Certo dia uma mulher morena veio à sua casa, e vendo as manchas que Graziella trazia na pele, adivinhou a situação. Dizia-se ex de Antônio, tinha passado pela mesma situação que ela há tempos atrás, naquela mesma casa em que agora ela estava. Lhe aconselhou a deixar o homem que aquilo não era vida que prestasse, mas ela nem ligou.
    Tempos depois Antônio chegou em casa dizendo que ia passar uns tempos no Ceará: ver os parentes, matar a saudade da terra... Nunca mais voltou.

    O tempo foi passando sem cartas nem cartões de Antônio, e Graziella suando sangue pra criar os filhos sozinha, até que o Carlos colou na dela. Um negrão alto, daqueles pra ninguém botar defeito. E queria casar com ela, criar os filhos dela. Acabaram se amigando. E ela apaixonou-se aos poucos por ele, encontrou um pouquinho de paz. Devagarzinho foram construindo a vida: ela mandou buscar as outras crianças no Ceará, os filhos menores já  chamavam Carlos de pai... Conseguiu ser feliz. Foi algumas vezes na terra natal, viu os parentes, abraçou os amigos e preferiu fingir que Antônio não existia.
    Agora, aposentada, vida mais tranquila, os filhos já grandes queriam notícia do pai de verdade, e tamanha foi a insistência deles que ela acabou por pegar um avião pro Ceará. Tinha ao menos que descobrir se a criatura não tinha batido as botas, mostrar a foto dos filhos pra ele, ver se a cara do infeliz ao menos tremia...

***

    Olhando pela janelinha da aeronave, ela desenterrava um filme que há muito não via, e só interrompeu a sessão quando a voz da moça soou pelos autofalantes. Apertou o cinto, respirou fundo e pediu a Deus que a ajudasse no que ia fazer. Adorava estar no Ceará de novo, mas de todo jeito aquilo lhe reabria feridas na alma que doíam demais pra serem ignoradas...
    Enfim o avião parou, e ela teve de se levantar. Desafivelou o cinto, refez o rabo de cavalo e esticou as dobrinhas do vestido vermelho e preto, o seu preferido. Ajeitou os óculos, pegou a bolsa e entrou no túnel. Ainda eram 4 da manhã e do lado de fora do aeroporto o sol ainda não se via, mas o céu já era clarinho, clarinho.

De repente, ficou feliz: ia ver de novo o sol nascer na terra do sol.


(...)

terça-feira, 5 de março de 2013

Caricatura da saudade


Ai, caramba! Ai que me abriram o peito sem nem anestesiar!
Ai! Ai que o bisturi rasgou fundo a carne, sem dó, e sangro agora sem cessar!
Ai, ai, ai!
Ai que nem sei a razão de tudo doer-me assim tão de repente, e eis-me aqui, feito demente, enlouquecido, sem entender.
Mas peraí.
Que é que eu fiz pra tanta dor merecer?

Ai! Ai, que o sangue arde, ai que e a pele queima, e o couro arde sem porquê!
Ai que tudo dissolve, que tudo em mim contorce, não chega nunca o amanhecer!

Ai, madrugada! Não entristeças assim o meu olhar, queres ver-me padecer?
Oh! Como sofro, como morro: e vou vivendo de morrer!

Ai!

Ai que em tantos ais eu já nem sei mais em que trapo estou
Caricaturo estes versos feito a prosa que era vossa mas que em mim ficou.

Era aquela prosa que eu queria prosear, se junto ti,
mas não estou e faço versos pra lembrar que nunca lhe esqueci.

Sabe, te amei, ouviu?
Quem sabe ame ainda.
Se um dia os nervos me faltarem faça o favor de me lembrar.

Me diga: deu a louca!
Mais uma vez me beije a boca.
Me olhe fundo, bem nos olhos que não vou me enganar.

Mesmo que passem anos
e que se desfaçam planos
esse poema exagerado há de dizer, eternamente:
quero lhe ver chegar.

*
*
*

P.s.: Perdoe as hipérboles, mas é que a saudade me degenera as células cerebrais.
Fazer o quê, né?
Ah, e meus neurônios me mandaram lhe dizer que não são de ferro ainda, portanto trate de voltar.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Lembranças do presente


É só o vento soprar de leve e a noite estar repleta de estrelas ou de nuvens ou de luz de lua, ou até nem ser noite ainda e o sol sei lá onde se escondeu que eu só vejo as indecisas cores crepusculares mixadas no azul, ou ainda que o mesmo vento seja só brisa - um quase nada de ar mexido que timidamente se faz sentir na fineza do tato da pele, ou até que nada me faça lembrar...

Ainda assim, o nada me lembra de uma coisinha acolá que não posso esquecer... A melhor que já me aconteceu. O melhor presente que a vida me... Deus.

E só pode mesmo ter vindo do alto uma invenção assim escandalosa, de tão boa que é.

É meu I feel good so good so nice, é quem me traz aos ouvidos todos os refrões de todas as canções que eu gosto de cantarolar: e é refrÕES sim, desobediência deliberada ao plural, que é pra rimar e deixar correr estas letras que me fervilham as entranhas protestando tinta e papel e flor de laranja lima...

Ah, quer saber? Que se dane a norma culta com toda a sua estética normativa e normalizante e que a nova ortografia faça rei o neologismo: precisa-se de palavras novinhas em folha pra escrevinhar mais nitidamente a sombra do sentir que sinto! Ó, sim! Um dicionário inteiro com fusões das mais belas palavras em outras novas que talvez consigam especificar o que se sente ao se sentir assim...

Ó, e que venham as redundâncias! Que se vista de pleonasmos o meu discurso! Quem sabe assim ele expresse mais claramente o quanto entra pra dentro das veias isso que chamam de amor, que invade sem pedir licença e que feito João de Barro faz o ninho em pura simplicidade, com o próprio pó de que somos feitos, naquele buraquinho da alma que faltava pra fazê-la inteira...

É o que tem feito a sua vida na minha vida... Ela virou mais inteira, mais completa, mais densa e intensa apesar de senti-la inexplicavelmente mais leve cada vez que cai a ficha de quanta sorte tenho de te ter...

Ah, quem me dera uma aliteraçãozinha qualquer, escrita de um jeito que finalmente me fizesse fazer ouvir algo feito o teu sussurro, sibilando suave sobre a suspeita de saber que sei que sou sua, simplesmente...

É tão rara a reciprocidade de um amor nestes tempos... Tempos que se dizem tão modernos, mas que privam cada vez mais gente da explosão evolutiva que é o exercício do amor, da iluminação que é amar... Curiosamente, somos raros.  E quem tem a raridade nas mãos vira guardião eterno de algo que encontra-se cada vez menos num mundo que sucumbe à superficialidade das aparências, à futilidade da estética...

Quem tem a raridade nas mãos sabe o quanto a superficialidade opõe-se à profundidade do amar, e descobre-se cada vez menor diante da grandeza daquilo que guarda... 

Quem ama descobre que tem gotinhas de divindade misturadas ao próprio sangue, pequenas partículas da perfeição divina concedidas a nós mortais...

Desconfio de que quando o Criador disse que somos feitos à sua imagem e semelhança, o que ele queria mesmo era nos contar um segredo: o de que, feito ele, somos capazes de amar.
Feito ele, temos um coração que é o perfeito habitat do amor.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Cariri


   Faltavam cinco minutos pra meia noite, e depois de 11 intermináveis horas de estrada, chegaram ao hotel, que logo descobriram ser uma pousada. Que logo descobriram ser uma “pensão estudantil”, que logo descobriram não ter ar-condicionado, e nem ventiladores que dessem jeito no calor infernal que fazia.
Mas tudo bem, os quartos tinham janelas.
“De madrugada o tempo esfria”.
Só que não.

...
   
   Às cinco e meia da manhã, batidas violentas na porta do apartamento lhes arrancaram do sono que a pouco tinham conseguido agarrar-se.  Ainda meia zonza, ela reconheceu a gangue feminina que entrava furiosamente no quarto, liderada por ninguém menos que a professora de Geologia. Todas elas gritavam, histéricas, decididas a eliminar a preciosa indolência matinal e obrigá-las iniciar o dia.

   Tomaram café sob a custódia de Alan, o guia turístico, que não parava de consultar freneticamente o relógio de pulso com o qual parecia ter nascido, numa compulsão absurda por cumprir detalhadamente o roteiro de visitação que havia criado para matar os pobres alunos do segundo ano. Seu plano era tê-los mortos no fim do dia, para que dormissem todos logo após o jantar.

   Assim que entraram no ônibus, o adorado guia turístico começou a lavagem cerebral em torno daquela nova propaganda do Governo do Estado do Ceará, “ô, ceará, eu vou, eu vou, eu vou te visitaaar, te curtiiir, te dividiiir, pra todo mundo vou te mostraaar...” – após 30 minutos de repetição, a melodia era simplesmente enlouquecedora.

   Depois de algum tempo dentro da condução, os ouvidos começaram a tapar em função da variação de pressão atmosférica: estavam em Juazeiro, subindo a colina do horto, rumo aos pés de Padre Cícero Romão Batista, com direito à passagem pelo museu de cera.  Mais alguns minutos de caminhada já encontravam-se em meio à feira local, e desvencilhando-se dos vendedores de fitinhas coloridas, chegaram até o museu.

...

   Ela entrou devagar, absorvendo os detalhes das fotografias e peças expostas, mas ao chegar à sala das graças alcançadas, os arrepios espinhais sucessivos que sentiu ao visualizar as centenas de mãos e pés e cabeças de madeira pendurados fizeram-na caminhar rapidinho porta a fora, e instintivamente, seguir rumo à luz que vinha da beira da chapada, de onde pôde contemplar uma das mais belas vistas da depressão sertaneja: feito uma panela de barro, a chapada circundava (e cozinhava) as cidades do Geopark Araripe, guardiãs das riquezas arqueológicas cearenses... Um completo deleite para os olhos, que, afogados na amplitude da visão, nem sabiam o que enxergar primeiro...
   
   Deixou-se estar ali, por nem sei quanto tempo, absorvendo o esplendor da paisagem à sua frente, observando os pássaros a brincarem livres naquele magnífico cenário, desejando ardentemente possuir asas que lhe permitissem mergulhar em todas aquelas cores, almejando fundir-se a toda aquela beleza que lhe chegava aos olhos em doses fortes demais para que resistisse ao sorriso que se formou no canto de sua boca, e que ali ficou...
   
   O que se via ali era no mínimo, surpreendente... Em meio ao forte calor, à sequidão em que encontrava-se a vegetação pela falta de chuva e apesar das inúmeras carcaças de gado morto que via-se pelo caminho, a natureza insistia em transmitir seus sinais inconfundíveis de beleza, como que a dizer, infinitamente:

“Enquanto houver vida, haverá esperança...”

   Mantendo os olhos vívidos, ela deixava-se embriagar pela paisagem, abobalhada com a plenitude que a cena lhe transmitia, a alma feito camaleão fotografando lentamente cada detalhe do que via e inevitavelmente colorizando-se com as cores daquele Cariri que mesmo seco, emanava vida...

   
E só por aquele momento, já valera a pena estar ali...


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