quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Amélia

    Estava lá, esparramada, há incontáveis horas. O corpo doía e o leito parecia ter-lhe aderido à carne. Sequer movia as pálpebras, tal movimento custava mais energia do que dispunha naqueles dias mórbidos. Estava acabada, esgotada, enferma. Aquela maldita doença arruinara sua vida. O pior é que só percebeu o quanto padecia quando desfez-se do medalhão de ouro, único bem que lhe lembrava os dias lindos.

...

    Acabara de acordar. O cheiro de café fresco e torradas amanteigadas de forno lhe despertara o estômago antes mesmo que os olhos abrissem à luz da manhã, e a menina caminhava ávidamente à cozinha do sítio guiada pela nuvenzinha de aromas que lhe chegava às narinas. Não demorou para ouvir a voz doce da avó lhe desejando bom dia enquanto descia as escadas de pinho perfumado na pontinha dos pés, tentando não ser percebida. Ops. Falhara novamente no seu plano de dar bom dia à avó antes que ela assim o fizesse. Era assim toda manhã: tentava, tentava e nunca conseguia. Vovó tinha ouvidos afiadíssimos, e apesar da idade avançada era capaz de ouvir até o som de alfinetes ao chão. Aí, a menina desistia da missão impossível e corria desembestadamente pros braços daquela a quem mais adorava no mundo inteiro, e pros seus deliciosos quitutes, obviamente! 
    A menina era ela, Amélia.

"Feliz aniversário, Amélia!"
"Oh, vovó! Que coisa linda!"

    Aquilo era ouro puríssimo, não restava dúvida. Tinha aprendido a reconhecer com o professor do internato. E era linda aquela estrelinha em relevo no centro do pingente, aquela de pontinhas arredondadas, que chamam de estrela de Davi.

"Pertencia à minha mãe. Durante a grande guerra eu tive que vir para o Brasil com uns amigos dela, e antes de partirmos ela me deu isto. Era uma época difícil pra nós. Não voltei a vê-la".
"Porque ela não veio com você, vovó?"
"Bom, Amélia, éramos judeus..."

    Amélia adorava as histórias que a avó lhe contava. Mas naquele momento, estava feliz demais pra reparar no olhar vazio que ela trazia : era 23 de Agosto, e ela tinha 11 anos, oficialmente!

...

"Oh, ela está acordando!"
"Mais 125ml de sedativo intravenoso".
"Sim, doutor".

...

    Em minutos ela caía em novo torpor. Não tinha mais 11 anos. E as doses fortes do álcool que consumira nos últimos anos fizeram-na parecer ter muito mais idade do que a identidade indicava. Era uma mulher de 27 anos com as rugas de alguém de 40, no mínimo. O sorriso, outrora motivo de orgulho tal era a brancura trazida pelos dentes alinhadíssimos, agora jazia em putrefação amarelada, era só mais uma de suas vergonhas. 
   O vício lhe furtara a gerência da empresa,o carro, o apartamento, móveis, beleza, marido, dignidade...tudo.
Nem lembrava mais quantas pessoas tentaram, em vão, tirá-la do túmulo que ela própria insistia em cavar. Dezenas lhe disseram que estava afundando, que esquecera quem era. Mas ela ainda tinha o medalhão, ora. Não estaria tão mal assim.

    Até que, num finzinho de tarde, acordou esparramada no chão do quartinho alugado, a cabeça latejando como sempre. Mas as mãos também tremiam, faltava saliva na boca e sentia uns arrepios esquisitos pelo corpo. Precisava beber, mas a carteira estava vazia.
    Saiu e trocou o medalhão por um litro de Vodka. Esvaziou a garrafa antes do cair da noite. E não caiu. Sequer tinha ficado bêbada, aquilo já não bastava pra tirá-la da realidade. Foi aí que percebeu. 

Entendeu. Reconheceu. Estava doente. E precisava da ajuda Divina. De um milagre.

Quando as lágrimas vieram aos olhos, ela correu. Desejou receber o abraço da avó no fim daquela corrida, como tantas vezes em sua infância. E sentiu nojo de si mesma por ser capaz de desejar aquilo. Não merecia perdão. Tinha trocado por Vodka! E um litro só. Continuou a correr e já não enxergava através das lágrimas.

Aí, viu uma luz.

E buzinas.

E mais nada.

...

    Não estava morta, disso tinha certeza. De vez enquanto escutava a enfermeira abrir a porta, e ela sentia picada de agulha nos braços. Só não conseguia reagir fisicamente à dor. À nada, aliás. Talvez estivessem induzindo-na ao coma pra poder tratá-la. Adoeciam-na ainda mais, para que pudesse viver. E ela deixaria. Se deixaria adoecer, morrer. Porque depois, quando ressurgisse, estaria forte. Seria um milagre. Recuperaria a vida, e o medalhão dourado.


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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Platônico

   Apesar de o sangue subir-lhe à face, no fim, cor alguma restava. E por maior que fosse a revolução dos sentidos ao vê-la, era sentimento efêmero. Quando ela lhe fugia aos olhos, nada restava.

Vasculhava a memória em busca de algo que sinalizasse a existência concreta de sentimento, um fato que justificasse aquele bem querer absurdo, qualquer coisa além da superficialidade da atração física, que era óbvia, e de razões óbvias: ela era linda. No entanto, concluiu que o que buscava não existia. Sequer a conhecia. Nutrira aquela afeição baseado unicamente no que via. Fora insensato. E frívolo. Morria de amores. Mas, era pelo quê mesmo? E ao perguntar-se, obteve o vácuo como resposta.

  Não havia nada real que justificasse aquele amor. Fora traído por si mesmo. Por seu próprio corpo, seus hormônios.
 
  E resolvera, naquele momento, que daria menor confiança aos sentidos. Confiaria menos na audição e extinguiria o crédito à visão. Pararia de agir feito um adolescente bobo. Afinal, tinha anos de experiência com o sexo feminino. Bastava ativar o modo sedução, e todas elas lhe caíam aos pés. Enlaçavam-se em suas palavras, cediam ao seu olhar.

Mas, pensando no assunto, Ela não cedera ao seu olhar. Tinha simplesmente ignorado seus métodos patenteados e lhe dava 'bom dia' na maior cara de pau. Ela lhe punha de quatro. Numa cegueira que fugia a razão. Amor platônico, irracional.

E só podia ser irracional mesmo. Estivera feito bicho por semanas. Mas, naquele momento tudo ficava óbvio. É claro que não estava apaixonado. O que sentira não passava de uma reação instintiva à rejeição. Por isso seu interior tinha se revirado. Naquela hora, dirigindo pro trabalho, afirmava a si mesmo que acabaria com aquela palhaçada. Ia ser homem, e sapiens sapiens, de preferência. Nem sabia nada dela, ora! Estava resolvido.

Chegou no escritório. Estacionou o carro e subiu as escadas.

"Gabriela?"
"Bom dia Fernando."

E aí, dane-se o que tinha resolvido dois minutos atrás. A testosterona falava-lhe alto.
Iria tentar outra vez, no intervalo. Talvez aquele perfume novo fosse ajudar...