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Acabara de acordar. O cheiro de café fresco e torradas amanteigadas de forno lhe despertara o estômago antes mesmo que os olhos abrissem à luz da manhã, e a menina caminhava ávidamente à cozinha do sítio guiada pela nuvenzinha de aromas que lhe chegava às narinas. Não demorou para ouvir a voz doce da avó lhe desejando bom dia enquanto descia as escadas de pinho perfumado na pontinha dos pés, tentando não ser percebida. Ops. Falhara novamente no seu plano de dar bom dia à avó antes que ela assim o fizesse. Era assim toda manhã: tentava, tentava e nunca conseguia. Vovó tinha ouvidos afiadíssimos, e apesar da idade avançada era capaz de ouvir até o som de alfinetes ao chão. Aí, a menina desistia da missão impossível e corria desembestadamente pros braços daquela a quem mais adorava no mundo inteiro, e pros seus deliciosos quitutes, obviamente!
A menina era ela, Amélia.
"Feliz aniversário, Amélia!"
"Oh, vovó! Que coisa linda!"
Aquilo era ouro puríssimo, não restava dúvida. Tinha aprendido a reconhecer com o professor do internato. E era linda aquela estrelinha em relevo no centro do pingente, aquela de pontinhas arredondadas, que chamam de estrela de Davi.
"Pertencia à minha mãe. Durante a grande guerra eu tive que vir para o Brasil com uns amigos dela, e antes de partirmos ela me deu isto. Era uma época difícil pra nós. Não voltei a vê-la".
"Porque ela não veio com você, vovó?"
"Bom, Amélia, éramos judeus..."
Amélia adorava as histórias que a avó lhe contava. Mas naquele momento, estava feliz demais pra reparar no olhar vazio que ela trazia : era 23 de Agosto, e ela tinha 11 anos, oficialmente!
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"Oh, ela está acordando!"
"Mais 125ml de sedativo intravenoso".
"Sim, doutor".
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Em minutos ela caía em novo torpor. Não tinha mais 11 anos. E as doses fortes do álcool que consumira nos últimos anos fizeram-na parecer ter muito mais idade do que a identidade indicava. Era uma mulher de 27 anos com as rugas de alguém de 40, no mínimo. O sorriso, outrora motivo de orgulho tal era a brancura trazida pelos dentes alinhadíssimos, agora jazia em putrefação amarelada, era só mais uma de suas vergonhas.
O vício lhe furtara a gerência da empresa,o carro, o apartamento, móveis, beleza, marido, dignidade...tudo.
Nem lembrava mais quantas pessoas tentaram, em vão, tirá-la do túmulo que ela própria insistia em cavar. Dezenas lhe disseram que estava afundando, que esquecera quem era. Mas ela ainda tinha o medalhão, ora. Não estaria tão mal assim.
Até que, num finzinho de tarde, acordou esparramada no chão do quartinho alugado, a cabeça latejando como sempre. Mas as mãos também tremiam, faltava saliva na boca e sentia uns arrepios esquisitos pelo corpo. Precisava beber, mas a carteira estava vazia.
Saiu e trocou o medalhão por um litro de Vodka. Esvaziou a garrafa antes do cair da noite. E não caiu. Sequer tinha ficado bêbada, aquilo já não bastava pra tirá-la da realidade. Foi aí que percebeu.
Entendeu. Reconheceu. Estava doente. E precisava da ajuda Divina. De um milagre.
Quando as lágrimas vieram aos olhos, ela correu. Desejou receber o abraço da avó no fim daquela corrida, como tantas vezes em sua infância. E sentiu nojo de si mesma por ser capaz de desejar aquilo. Não merecia perdão. Tinha trocado por Vodka! E um litro só. Continuou a correr e já não enxergava através das lágrimas.
Aí, viu uma luz.
E buzinas.
E mais nada.
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Não estava morta, disso tinha certeza. De vez enquanto escutava a enfermeira abrir a porta, e ela sentia picada de agulha nos braços. Só não conseguia reagir fisicamente à dor. À nada, aliás. Talvez estivessem induzindo-na ao coma pra poder tratá-la. Adoeciam-na ainda mais, para que pudesse viver. E ela deixaria. Se deixaria adoecer, morrer. Porque depois, quando ressurgisse, estaria forte. Seria um milagre. Recuperaria a vida, e o medalhão dourado.
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