sexta-feira, 8 de julho de 2022

Eremita

Habitava casas não-suas
conchas
cascas de outros seres ausentes

O molde de uma antiga vida
lhe fazia crer
que novas poderiam surgir

As cascas crustáceas
por vezes rachadas
lhe cutucavam a pele:
sempre achava 
que poderia reformar

Misturava-se aos corais
avistava novos invólucros coloridos

Quanto mais bonitos mais vazios
às vezes até inertes: 
nunca nem houvera vida ali

Confundia latas velhas 
de refrigerante
com abrigos

E copos descartáveis retorcidos
com uma forma nova 
e revolucionária de morar

Tentava, testava, 
experimentava
nada parecia tão bom 
quanto a casca anterior

Caminhava na melancolia 
do que se fora
do que fora

O antigo ser que se apertara 
pra caber em casas não flexíveis

Como pés que se quebraram 
para entrar em sapatos pequenos

Até que veio um estralo
um espelho
um palpite:
já tinha invólucro,
barreira,
fronteira,
limite

Seu exoesqueleto 
quitinoso
era mesmo 
duvidoso
mas ainda frágil
o corpo-casa
lhe bastava

Continuou a dançar 
em conchas
mas então 
refizera as contas
e era assim de outra 
margem que olhava:

Ao invés de 
clausura e cárcere
decidiu acolher 
a casa 
que de tão leve
e frouxa
lhe fosse asa



* * *


segunda-feira, 4 de julho de 2022

Não

Melhor a escuridão da casca
que a luz da vitrine
a exposição
a incerteza
a ansiedade
a assimetria: 
ofertar tudo,
não receber metade

Fazer um desfile estético
castrar a selva de pelos 
e os desejos selvagens
docilizar a fala
domar a raiva
cruzar as pernas
pedir desculpas 
encobrir ataques absurdos 
às próprias bordas

Descobrir, muda e pálida de espanto
que meu não é convite para o sim
código perverso de uma linguagem
destruidora de minha subjetividade


Deixe que eu te ensine, querida
você não sabe gozar
quando você pede calma 
é que quer o contrário
se disser que não 
eu transformo em sim
eu é que sei

Sei toda a estrutura 
do seu pensamento
te esquadrinho
adivinhe só
antes mesmo 
que você pense
eu já sei

Leia este livro
ele te ensinará teu lugar
eu sei 
que você disse que não
mas eu sei 
que queria dizer sim

Tudo que você disser 
eu já sei
o que você for citar 
eu já li
até mesmo a sua intuição 
é construção social, 
veja bem

Na verdade 
só eu sei 
dos seus desejos
deixe que 
eu 
te guie 
nessa estrada 
confusa que é você

Você está tão confusa, querida
veja:
se eu 
rasgar a sua roupa
foi você 
quem quis

Venha
é a ssim
que to das gos tam
eu vi nos filmes pornôs
quero ver seu rosto 
fazendo a mesma cara
aliás
seu rosto é o que menos preciso ver

Olhar no olho para quê
conexão não é o que 
nenhuma delas parecia precisar

Dessa vitrine você parece tão bela
continue assim
estática
pra eu 
te ver melhor

Evite respirar
não me contradiga
assim não posso aguentar
(sou frágil)
a culpa 
será
sempre 
sua 



*