segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Ressurgências

Ser ressaqueada pelas ondas da saudade
o fundo remexido de mar revolto
ânsia de vômito e de voo 
asas de bater

Olhe de novo
a canção ainda repuxa teus lábios no riso
o riso ainda se espalha nos olhos
arqueia a sobrancelhas e enruga a testa

Ah, arquear a alma no teu riso descansado...

Ando procurando imitar teus últimos gestos
Entender desde cedo o caminho de deixar 
o prazer se espalhar pelo corpo e ir embora

As dores também

Não conter o fluxo 
e nem os fluidos

Teus olhos fechados, vó
são passarinho vagueando no mundo

Tu
que tanto viu,
que voou.

Sabiá.


*

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Laços

Estou cercada de mulheres fortes
minhas ancestrais
fundaram o chão que piso 
cavaram no braço as fontes 
que me sustentam

Mocinha
Graziela
Antônia
Rosana

Rosângela
Rosilane
Rosiane
Mirella

Kátia
Cristina
Isabel
Geçonita

Balbina
Isaura
Antônia
Patrocina

Quando eu estava só
e quis desatar os nós
descobri que eu era uma
com milhões  


* * *


quarta-feira, 20 de outubro de 2021

20 de outubro

Eu gosto de mandar recados
assim pela lua
assim pelo vento
pelas nuvens e pelos pássaros

Que as palavras 
são sempre menos que o silêncio
que não dizer nada 
é sempre mais que dizer

Te envio então os meus silêncios
olhares reverentes para o céu de outubro
mergulhos azuis na noite já adiantada
espaços vazios entre o cintilar das estrelas


***

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Fechamentos

Não há culpa nem nada
Apenas desaprendeste 
A ler nos meus olhos 
as verdades transparentes

Escorridas em lágrima 

Finas demais 
para serem deixadas à margem
Discretas, mas poderosas
Poderiam redefinir os rumos 

Do corpo brotaram soluços cabais
Angústia e urgência
Estavam ali 
Desejo desesperado de ficar 

Por vezes intermináveis 
eu fui líquida
Acessível 
Tangível e aberta 

Os olhos aos borbotões 
Vazaram muito mais que sinais
Eram gritos,
Não ouvistes? 

Havia desejo e possibilidades
Eu estive aqui
E vistes,
Mas tinhas outros afazeres. 

Estava ali toda a vida possível
Parecias morto
Ao invés de pulso,
O nada 

Estranhei
Me fiz viúva em vida
Por isso o luto
Por isso o silêncio 

Os olhos tristes 
vageando nas coisas
A despedida inconsciente
Nas felicidades 

Fui dizendo adeus 

Desde o dia que morrestes 
Não tive mais tempo para teu ciúme
Nem para me debater
Nem para debater 

Tudo que fazias era luto e adeus
Cada palavra áspera 
escorrida da sua boca
te ajudou a morrer

Foi uma boa morte.

não foi preciso mais nada
além de te arrancar de mim
pela raiz

e me plantar no seu lugar
e por semente
no lugar que sempre foi meu


*

Tribos

"Primeiro foi a tribo Paraxó  (diz, confusa, meio no sonho, meio aqui)

"Lá era tudo tão bom...

O mar dos índios é muito lindo, minha filha."


* * *

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Achados arqueológicos

 Ainda existe gente

Que troca abraços gratuitos

Que cria laços indissolutos

Que ama fora de seus redutos


Ainda existe essa gente 

Que se bota a forçar as cordas 

Que rompe limites e bordas

Que costura afetos nos fios das notas


Ainda existe este olho-coragem

Que se mantêm no meu

Que me traz à margem

Que me vê quem sou


Que ainda assim fica

Que ainda assim se dá

Que dá de ombros pros meus desajustes

Que me vê integral


Humana e ambivalente

Volúvel e fugidia

Insegura

De carne


Ainda assim restam olhos-laços

Que enxergam tudo isso

Só como ser gente

Só como ser parte


Os desvios da mente 

e as estrias do corpo

As inconsistências

e as belezas


Todos os fragmentos

de um pacote inteiro de vida. 

sem propor culpa 

ofertam presença e mais nada.


(isto é graça que basta)


***

domingo, 29 de agosto de 2021

Lembrete

Lembrar que nunca seremos suficientes
que a humanidade é exatamente 
sobre a falta, sobre os buracos

A falta move a procura
guia a transformação

Estamos aqui não para encontrar 
o preenchimento de fato, 
mas para caminhar na direção do mutável

Que seja doce cada aprendizado
Que cada dia do processo valha e seja vida
Que a vida inteira seja inteira de vida


*

domingo, 22 de agosto de 2021

Lua azul

Os fazeres com que ocupamos as mãos 

nos transformam

Traços, rabiscos, agulhas e linhas

Colheres, réguas, compassos

Níveis de bolha e pá

Me constituem

Trocam fagulhas com meu dna

Flertam com os genes sem no entanto

neles se expressarem


Ou talvez se expressem


E nossos microscópios ainda não sejam

potentes o bastante para traduzir estas

belezas herdadas em mistério

Em silêncio

Em ato repetido

Em ritual cotidiano


Características adquiridas 

entre os bolos de milho e as conversas da tarde

Entre o mingau de carimã e o boa noite

Bordadas em minha pele feito as colchas

de restiliê


Pelas frestas das quais me tornei

permeável à você, senhora

Minha amiga

Meu par

Minha avó.


* * *

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Dúvida

Pequenas doses de dor
venenos na alma
pedra na vidraça, tiro

Por fora 
um pequeno orifício
por dentro, sangria

dilaceração
hemorragia interna
órgãos desvitalizados

será isso o amor?


*

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Lua crescente

Ajunto evidências da minha loucura : 
Ser sã não me atrai muito

Adoro andar pelas tardes a caçar o sol
Uma réstia que venha pela brecha dos olhares
Coleciono todas num mural

Me reviro em busca de réstias :
em mim, nada.

Cisco o chão de mim em busca de folhas ou galhos
Qualquer coisa que me lembre

Perdi todas as palavras
Letras e arquivos se foram 
Minha memória já não basta também

Quero lhe ver

À cores, em cheiro e tom
Seus cabelos no vento 
e olhos nos meus


*

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Bálsamo

sempre haverá 

encontro nas ausências

milagre nas carências

pão para a alma

sopro 


oculto em meus buracos,

Deus. 


me habitará

como sol atrás do monte

aguardando que eu me apronte

luz nas retinas

vento


*

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Lagarta

Há um processo longo e doloroso até chegar o momento em que a lagarta , em sua imobilidade, se descobre possuidora de asas.
No momento em que elas descobrem, precisam sair dali. 
Por que razão as lagartas permaneceriam no casulo após se saberem possuidoras de asas? 
Porque manteriam as asas encolhidas, úmidas de gosma e tristes? 
Será a fome a desencadeadora de movimento? 
Ou será o sentir-se tão leve a ponto de quase sumir?


*

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Rãs e estrelas

Quero ter sempre os olhos de enxergar a hora em que as rãs acordam. 
A hora em que as rãs acordam é a mesma em que os pássaros se arrumam pra dormir. 
O despertar dos pulinhos sobre as folhas é a canção de ninar favorita das rolinhas , que por isso nem  precisam cantar pro seus filhotes miúdos. 

O dia em que percebi que elas tinham hora pra sair das tocas foi uma coisa engraçada: toda vez que eu tomava meu café da tarde no quintal eu sentia uma ou outra pular gelada nos meus braços e pernas. 
Acho que esse acontecimento repetido, sensorial, que sempre me arrancava uma risada e um olá foi o responsável pela descoberta posterior. Passei a mapear com os olhos os caminhos que elas faziam e percebi que eram percursos ascendentes. 
As danadas pareciam sempre brotar do chão e subiam espertas pelos pés de madeira do caramanchão e pelos galhos da árvore e plantas. 

Um outro dia percebi que muitas delas passam o dia no encanamento de água, e que ficavam ali agrupadinhas, na boca do cano, esperando o momento certo de emergir no entardecer. Em certo momento a boca do cano está vazia, e no outro começa a surgir ali um colar e um recheio de rãs aglutinadas como escolares impacientes há minutos do recreio. 
Ainda não sei ao certo se a medida da hora é a temperatura do ar, ou se é quantidade de luz, ou se é o barulho das apetitosas muriçocas que lhes convoca pro café da noite sob o céu estrelado. 
Mas que tem uma hora, lá isso tem. 

Uma primeira rã inaugura o instante e faz seu primeiro salto. 
As outras a seguem aos poucos, e se seguem minutos e minutos da melodia de saltinhos gelados por todo lado. 
Se você ficar bem paradinho consegue ouvir tudo. 

Enquanto a melodia encorpa, a cortina de luz do céu se fecha e os tons de azul se aprofundam , como se o jogo de luz e cor fosse estratégia  planejada pra experiência do público.
O público aqui agradece.
Cessam as palmas.
Começa o próximo ato : estrelas. 

Quero ter sempre tempo de olhar as estrelas, e de notar o tom de azul mutável enquanto elas nascem no entardecer...


*

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Casca

hoje experimentei um paletó caro e bem cortado
só para me sentir inadequada
encasulada em imagem 
e vazia por dentro 
embrulhada em forros de cetim alheios ao sol-ceará 
tudo grudou. 
quero me vestir das asas das borboletas
fluidas
leves
coloridas
instrumento do sonho e da vida
nudez inconsciente


*

sábado, 17 de abril de 2021

Abril :

- Preencher as crises de dentro com outras belezas

- Encontrar caminhos possíveis

- Aguardar a lua encher.



*

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Narcisismos

Quantas viagens narcísicas ainda farei nos seus olhos
Quantas visões me serão precisas até bastarem as fantasias

Até terem sido todas vestidas por tuas mãos
Até terem sido todas levadas no teu sopro
no teu tempo

O tempo, me desespero: 
parece não ter me feito melhor
me fiz ainda mais crua
me fiz ainda menos sábia
ainda mais vã

Continuam as ondas dos primeiros dias a reverberar em mim como se nunca tivessem rebentado e desfeito em meus mares. Como se não fossem apenas notas, frequência, fotografia do instante.

Continuo a acalentar um desejo frouxo, tão pouco afeito à vida quanto querido pela morte...
Nem se acaba, nem convalesce.
Nem se assume vivo, e nem morre de vez.
É uma coisa morna e tão estática que parece ainda movimentar as coisas.
Por se saber dormente se deixa existir.

Umas vozes que ressoam confusas
Uma esperança velada
Palavras específicas que me deixam atônita

Cheiro.
Rede.
Laranja. 
Lima.

A Lua está cheia em Libra.


*

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Semiárido

Não tenho medo dos ares áridos 
ressequidos, desaguados
do chão que racha

temo as palavras secas
fios cortantes

evaporam um mar inteiro 
mesmo que se finjam suaves

ressecaram todas as minhas águas

da pele
dos olhos
da boca
de mais dentro

todos os meus fluidos se foram

quero as palavras úmidas
fluidos novos
fluidez

nadar no rumo da maré
remar com o vento
caminhos abertos


*

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Ano novo

 A chuva parece que desacelera o ritmo das coisas.


Quem olha pra ela parece adentrar numa massa de nuvens onde tudo é como caminhar dentro d'água.


As gotas muitas deste janeiro úmido fazem brotar do chão as mariposas e as formigas com asas, meu grande mistério. Pequeninas, vêm aos montes rodopiando no ar à procura de uma lâmpada quentinha que as acolha.


Deixo que pousem em mim - ainda sou alguma chama.


Olho para este imenso oceano úmido de janeiro como quem não sabe nadar, e atravesso os dias da única maneira possível :
boiando. 



* * *

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Fio

Ainda há o fio
fino
frouxo
tênue
quase invisível

que carrega as coisas que eu penso
vagamente
pra você

o que chega aí 
é quase um murmúrio
um vento
um quase nada
uma sensação 

de que é coisa da sua cabeça
de que fios se partem 
de que amores e quereres se vão
que são vãos

vez ou outra acordo 
com uma canção no ouvido
vinda de um sonho
cantada na voz

cantada em sua voz, não na minha
não produzi aquilo, não poderia

acordo
sento
escrevo
e canto

a canção foi o fio que mandou de você



*

domingo, 3 de janeiro de 2021

Constatação

Estou cercada de muitas razidões
eu mesma pareço não ter mais nenhuma profundidade
As razões que cada um detêm entulham os poços de mim 


*