o fundo remexido de mar revolto
ânsia de vômito e de voo
"Primeiro foi a tribo Paraxó (diz, confusa, meio no sonho, meio aqui)
"Lá era tudo tão bom...
O mar dos índios é muito lindo, minha filha."
* * *
Ainda existe gente
Que troca abraços gratuitos
Que cria laços indissolutos
Que ama fora de seus redutos
Ainda existe essa gente
Que se bota a forçar as cordas
Que rompe limites e bordas
Que costura afetos nos fios das notas
Ainda existe este olho-coragem
Que se mantêm no meu
Que me traz à margem
Que me vê quem sou
Que ainda assim fica
Que ainda assim se dá
Que dá de ombros pros meus desajustes
Que me vê integral
Humana e ambivalente
Volúvel e fugidia
Insegura
De carne
Ainda assim restam olhos-laços
Que enxergam tudo isso
Só como ser gente
Só como ser parte
Os desvios da mente
e as estrias do corpo
As inconsistências
e as belezas
Todos os fragmentos
de um pacote inteiro de vida.
sem propor culpa
ofertam presença e mais nada.
(isto é graça que basta)
***
Os fazeres com que ocupamos as mãos
nos transformam
Traços, rabiscos, agulhas e linhas
Colheres, réguas, compassos
Níveis de bolha e pá
Me constituem
Trocam fagulhas com meu dna
Flertam com os genes sem no entanto
neles se expressarem
Ou talvez se expressem
E nossos microscópios ainda não sejam
potentes o bastante para traduzir estas
belezas herdadas em mistério
Em silêncio
Em ato repetido
Em ritual cotidiano
Características adquiridas
entre os bolos de milho e as conversas da tarde
Entre o mingau de carimã e o boa noite
Bordadas em minha pele feito as colchas
de restiliê
Pelas frestas das quais me tornei
permeável à você, senhora
Minha amiga
Meu par
Minha avó.
* * *
sempre haverá
encontro nas ausências
milagre nas carências
pão para a alma
sopro
oculto em meus buracos,
Deus.
me habitará
como sol atrás do monte
aguardando que eu me apronte
luz nas retinas
vento
*
- Preencher as crises de dentro com outras belezas
- Encontrar caminhos possíveis
- Aguardar a lua encher.
*
A chuva parece que desacelera o ritmo das coisas.
Quem olha pra ela parece adentrar numa massa de nuvens onde tudo é como caminhar dentro d'água.
As gotas muitas deste janeiro úmido fazem brotar do chão as mariposas e as formigas com asas, meu grande mistério. Pequeninas, vêm aos montes rodopiando no ar à procura de uma lâmpada quentinha que as acolha.
Deixo que pousem em mim - ainda sou alguma chama.
Olho para este imenso oceano úmido de janeiro como quem não sabe nadar, e atravesso os dias da única maneira possível :
boiando.
* * *