segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Apagão em fundo de quintal


A chama trêmula da vela acesa sobre o pires de porcelana fazia o véu da noite tremer inteiro à sua vista, banhando o profundo azul de sol como fosse dia, numa fusão de cores tão intensas quanto sutis, que embriagavam-lhe o olhar desatento a vagar por entre as estrelas do céu...

Permanecia ali, os pés pendurados, consumindo as cores como um ópio que lhe concedia a insanidade necessária para que entendesse a linguagem da lua e pudesse trocar umas idéias com ela, que lá de cima, enxerga melhor as coisas todas que cá ocorrem. 

Ali, a escuridão lhe fazia redescobrir a plenitude que é banhar-se de lua enquanto respira-se estrelas, a alma derretendo em sorriso...

Era linda a forma como a luz alaranjada sobre a cesta de flores azuis recortava o céu em retas e curvas mais-que-perfeitas. Ali, a assimetria parecia ser a explicação para aquelas percepções visuais impecáveis apesar de tanta irregularidade nas formas: uma verdadeira tese escrita contra a crença humana na beleza puramente simétrica, e nem era necessário usar sequer uma palavra. 

As roupas que há dias pendurara no varal ainda permaneciam ali, suspensas no ar e largadas ao vento, deixando-se levar pra onde quer que a brisa as levasse, mergulhadas em plena suavidade, parecendo estar mesmo convencidas de que, naquela noite, eram as primeiras bailarinas do espetáculo que ali se via...

É claro que não havia música no ar: a rede elétrica encontrava-se em queda, e ninguém se propunha a pegar o violão empoeirado. Além disso, as baterias dos celulares tinham descarregado no meio do dia. 
Entretanto, o silêncio era musical. Não reinava absoluto: vez ou outra o vento sibilava macio contra a folhagem da samambaia num canto de parede, dando breves pausas à musicalidade que só a ausência do som é capaz de fazer ouvir.

Ali, pés pendurados, dava-se ao luxo de admirar suas constelações favoritas, que feito diamantes lapidados luziam cravejadas no manto celeste, tão bem dispostas quanto os botões das camisas de algodão que a avó costumava costurar. Eram pontinhos tão reluzentes que lhe confundiam a vista, fazendo-a piscar repetidas vezes a fim de recuperar o foco...

Ali, pés pendurados e café com leite morninho a descer pela garganta, recuperava a poesia que há tempos parecia ter-lhe abandonado, mas que na verdade havia simplesmente adormecido por entre a freneticidade da rotina metropolitana e que ali, em meio ao apagão, ressurgia junto à chama trêmula, à luz de velas brancas... 
E daquelas que se compra na vendinha do bairro, mesmo.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Coisas de sabiá


   Acabara de ser atingido pelo companheiro de bando e ainda estava meio desorientado. Mas sabia que tinha que dar seu jeito, limpar o corpo e continuar vivendo que a batalha não ia acabar tão cedo.  Na hora do disparo ainda estava na antena de transmissão, mas quando fora atingido saiu a esmo, e ao cair em si, estava em cima de um galho da goiabeira. Olhou de lado e viu outros companheiros na mesma condição. A mesma cara de desespero, um brilho sinistro na vista embaçada pós- ataque.  Ali, no galho, recuperando-se do susto, Dorim planejou sua reviravolta: daria o troco. Os companheiros de galho pareciam ter os mesmos sentimentos que os seus. Queria estar lá em cima da antena, e aí, mirar em quem estivesse no degrau de baixo.  Queria ver se repetir a cena que à pouco vivera: o atingido sairia a esmo, vista turva e sentidos sem direção, até achar-se num galho da goiabeira. E ele, lá de cima da antena, sorriria, feliz.

   Resolvera aproveitar e beliscar uma goiaba, enquanto arquitetava a vingança. Pensando bem, podia ir mais longe, quem sabe achar uma outra antena com um outro desavisado na grade de baixo. E aí... puf! Atirava.  Seria interessantíssimo. Só precisava achar uma goiabeira e uma antena.
   
   Resolveu então partir em busca do lugar perfeito para a execução do seu plano perfeito.  Passou por bosques e jardins, atravessou florestas e mangues...  Subiu e desceu montanhas, se aventurou no concreto das construções... desceu por uns abismos  e avistou os trilhos do metrô... emergiu das profundezas e sujou os pulmões com o ar da metrópole...

   Já ia cansando-se de perambular, quando, ao ver uma fileira colossal de postes de energia interligados por um montão de fios pretinhos, a luzinha do seu cérebro acendeu.
É aqui! É aqui! - gritava seu subconsciente.
Agora era só ir pro fio de cima e esperar alguém chegar no fio de baixo.  E foi.
Não demorou muito e outros juntaram-se a ele. E aí, que felicidade!  Começou a atirar que nem um louco em quem estava embaixo. Mas não acertou em ninguém. E aí, quando ele percebeu, estava sozinho de novo. Os outros foram pra bem longe, agora. É que perto do poste não tinha goiabeira. Aí, enraiveceu-se, e mirou no chão, mesmo.  E foi embora procurar a goiabeira, pra poder abastecer de novo.

   Acabou esquecendo-se do que tinha acontecido no poste e continuou a vida.

   Umas primaveras depois, passou perto do poste sem querer. E quando viu, viu uma goiabeira.  E aí, ficou tão, tão, tão, feliz que percebeu que nem tava mais triste por não ter conseguido atirar em quem tava na grade de baixo naquele dia que não tinha goiabeira. Porque agora tinha goiabeira, e porque era toda dele porque no dia em que tinha comido goiaba, atirou no chão e a goiabeira nasceu!  
Os outros sabiás, quando viram que sabiá Dorim tinha uma goiabeira só dele, resolveram também sair poraí atirando no chão pra ter uma goiabeira só sua, linda de morrer feito aquela...

   E aí, umas primaveras depois, debaixo da fileira colossal de poste de energia, agora tinha uma fileirona linda de goiabeira cheia de goiaba madura. E um belo dia, quando a dona Clara que morava na casa da antena voltou pra casa de metrô, não sujou mais os pulmões com o ar da metrópole! 

É que umas primaveras atrás, Dorim plantara umas sementinhas embaixo do fio do poste, e aí, umas primaveras mais tarde, tudo tinha ficado melhor.



*

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Procura-se um poeta


 É, lembro dele sim...
Até definições lhe eram tocadas pela criticidade...
Costumava retocar até obras completas...
E até num copo d’água esborrotando, fazia gotejar suas impressões...

Pensava, imaginava, agia. Criava uns mundos. Desfazia outros.
E no silêncio da noite, chorava. É, chorava.
Esvaía-se da consciência, da moral, despia-se de preconceitos, e tão somente vazava pelos olhos. 
É que era tudo tão... perfeito.
Cada detalhe do viver lhe era incompreensivelmente compreensível.
A vida simplesmente fluía, sublime.

E as lágrimas complementavam-lhe o existir.

Tinha descoberto que o sofrer lhe faria crescer, e sofria como adubo espiritual.  Não hesitava em regar a alma se a terra se encontrasse seca.
Sim, amava. Com todas as forças que tinha, e junto ao seu sinônimo, o sofrer.
Apaixonadamente, apaixonava-se pelo máximo que podia.
E por pessoas, sabores, pelo mar e suas cores...  
Por olhares, sorrisos, em tudo que enxergava, via paraísos...

Até que um dia lhe compraram óculos, e um lenço azul para limpar as lentes. 
Agora o mundo parecia nítido demais... até doía na vista!
E via rugas nas pessoas, dentes amarelos nos sorrisos e esgotos nos paraísos.
E sua alma leve já não flutuava. 
Tornava-se aos poucos, infeliz.

E quando já quase sem cor na alma, terra seca rachada sem chuva, teve uma idéia que lhe salvou o existir: quebraria o óculos, é claro!
E quebrou. Mas quebrou só as lentes, e pronto: o mundo era bonito de novo. 

E aí, amarrou o lenço azul feito gravata borboleta e saiu poraí, borboleteando.
Quando passou poraqui, parecia que ia flutuar de tanta felicidade. Assobiava feito passarinho.

Dizem que dobrou ali na esquina, os olhos rasos d’água, jurando que via paraísos...
Onde?
Ora, deve estar por aí, seu moço. 
Tenho mais o que fazer que vigiar um fazedor de poemas, não acha? 
Passar bem.

Deliciosos clichês


Meu amor, desista. Não há como fugir dos clichês.
Mesmo quando você tentou fugir deles em suas letras, você as leu para mim sob a luz das estrelas...
Você me abriu a porta do seu carro, me beijou no portão...
Namoramos no banquinho da praça, dançamos sem música no meio do nada...

Quando eu te fiz uma canção e não cantei, você me escreveu, e não leu. E quando eu não te liguei, você fez birrinha e não ligou. Puro clichê.

Você me liga sempre pra dizer que tá com saudade, pra desejar bom dia,  pra desejar boa noite:  “ vou sonhar com você. Sonha comigo, tá, gata?”...

E aquela vez, lembra? Simplesmente não conseguíamos dar tchau ao telefone! Nunca pensei que essa história de “desliga você” fosse mesmo existente no mundo real. Aliás, isso é mesmo real? Será que não estive sonhando? “Ah, me belisca aí, vai!”

Não tem jeito, meu bem.  Somos mestres nos clichês, mesmo sem querer, e mesmo não querendo.
Ahh meu amor, amor meu...
Parece mesmo que você sempre esteve aqui. Talvez porque já estivesse mesmo, fotografado aqui no meu olhar, guardado em algum lugar da minha mente, num cantinho que só se fez mostrar quando você chegou...
E... se todos estes clichês existem de fato, porque não usá-los não é?

Pelo menos de vez em quando, prometo te dedicar um clichê.
E só pra ver no teu rosto esse sorriso que eu adoro, te escrevo uns clichês.
Clichês de coração.
Alguns meio bregas mesmo. Outros nem tanto.
Mas todos deliciosos.
Deliciosos clichês. 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

De vez em quando, acontece...

De vez em quando a dor vaza pelos olhos mesmo... É que a pressão emocional, quando é forte demais, vira dor física. Dor, mesmo.
Enquanto passava por isso agora a pouco, estive analisando. Não, não se tem uma "impressão de dor".
Dói, meesmo.
A tensão emocional vira dor física, pungente, aguda.
Nesse ponto, é impossível controlar-se. E se distrair, arrumar algo pra esquecer a situação é o pior caminho possível. Porque esquecer não é resolver. O melhor é enfrentar. E chorar. Chorar até não restarem mais lágrimas, sem vergonha ou preconceito. Esvaziar a alma.
Aí, quando tudo seca, é simples: lave o rosto, sorria,  continue.
O mundo não acabou. A tristeza faz parte da vida, e o sofrimento é a melhor forma de aperfeiçoar-se.
Enquanto os soluços durarem, deixe-os durar. Não segure, mas liberte-os.
Deixe que escorram até não restar mais nada.

E aí? Acabou? Não?
Isso, chora. Chora até que a lembrança da situação não lhe traga lágrima alguma aos olhos. Revire a alma em lágrimas, até não restar nada, mesmo.

E aí? Acabou?

Bom, tenho um segredo pra te contar: não acabou. Sinto muito, mas você ainda vai ter muitos momentos assim na longa caminhada da vida.
Mas, agora, sorria. Sorria, ok?
Você sobreviveu. E o mundo não acabou. Isso, respira.

Aí, um sorriso lindo vai brotar dos seus lábios.
Viu? Passou!

*

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Divã

Para iniciar a consulta, basta você agir da forma mais idiota que você puder em minha presença. Você pode abusar de sua autoridade, instituir em alguém um AI 5, tal Costa e Silva, abafar uma voz. E simplesmente porque a hierarquia lhe favorece.

Adoraria poder, como qualquer pessoa (ou pelo menos a maioria delas), só fazer cara feia e pronunciar aos gritos os piores xingamentos existentes ao ver ou ouvir algo que não me agrada.
Mas, do contrário, calo-me, e reflito.
Inicio uma enorme atividade mental na busca de alcançar a compreensão daquele ponto de vista, ideia ou atitude que me aborrece. Tento com todas as forças ver prós e contras, peso e meço cada conceito.

E, não encontrando razão para tal absurdo, inevitavelmente passo a analisar o indivíduo do qual surgiu tão confuso pensamento, tão inversa maneira de agir.

Ah, adoraria não fazê-lo, e acho até que não tenho  direito de analisar a mente humana, mas é inevitável.
Eu começo a estudar o histórico daquele indivíduo, sabe? Seus tabus, medos, preconceitos, traumas...
É que qualquer decisão tomada externamente é diretamente influenciada por fatores já internalizados anteriormente. Se hoje, por exemplo, você decide não tocar numa panela fervendo é porque certamente você vivenciou experiências negativas acerca daquilo. E aí, você decide não tocar na panela para evitar uma possível queimadura. Parece um simples mecanismo de defesa, não é mesmo?

Bom, sobre a panela quente, você tem absoluta razão em não tocar. Você internalizou um conceito benéfico, aproveitável. Porém, da mesma forma que internaliza-se um conceito positivo por uma percepção positiva, por uma percepção errada pode-se também, internalizar conceitos negativos, doentios.

E é aí que nascem os medos, traumas e tabus.

Dessa forma, cada vez que alguém me impõe suas decisões de forma arbitrária e absolutista, o que ela consegue, na prática, é uma análise psicológica gratuita.

Portanto, caro cidadão, se não quiser deitar-se no meu divã, fundamente suas ideias, convença-me.
Do contrário, seu autoritarismo só servirá para fortalecer minha ideologia.

Coisas da vida

Viver é invariavelmente belo. Não é à toa que tantos poetas insistem em dizer que a vida é bonita. Todos eles, de tanto olhar, sentir e viver, chegam à mesma conclusão...
A simples descrição dos processos químicos da vida é inebriante, pura poesia, perfeição encontrada unicamente nas obras divinas...

Como o ar que respiramos sabe exatamente para onde seguir?
Como o carbono que produzimos parece ter plena consciência de que seu lugar não é em nosso corpo, mas no ar, para que as bailantes folhas verdes das árvores o devorem em fotossíntese?

Como é que a chuva cai?

Como é que sol não cansa de nascer?

Como é que as andorinhas fazem aquele espetáculo no céu sem nem precisar ensaiar?

Porque é que o vento insiste em soprar, e em fazer a onda do mar quebrar, o suor evaporar e o cabelo emaranhar?

E a cores do crepúsculo, quais são?

Será que dá pra descrever a beleza do luar?

O saber científico pode até tentar explicar, testar, comprovar. Mas não desejo respostas. Viver ultrapassa qualquer entendimento. Não é na solidez da certeza onde desejo morar: prefiro o nômade, o incerto. A permanência sequer existe, exceto em Deus. É a fluidez do mutável que faz este mundo tão belo.


A vida é um interminável espetáculo de dança onde cada bailarino sabe exatamente quando e como desempenhar seu papel, todos indispensáveis para manter a harmonia deste palco imenso ao qual chamamos universo...

E cabe a nós, mortais, simplesmente viver.


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terça-feira, 15 de maio de 2012

O fanfarrão


Que fazer quando o vazio é tudo que te preenche? Quando o vácuo é o teu esqueleto, é o que te põe de pé? Que sentir se este seco sentimento povoa-lhe cada minúsculo espaço entre entranhas?  

Esvaziara-se de tudo exatamente para que não restasse nada. Nem sequer a dor. Deixara escapar deliberadamente qualquer coisa que chegasse próxima ao sentir. Era aquela a única maneira de poder continuar. A prática lhe ensinara a separar as reações corpóreas das emocionais. E no fim, seu ser inteiro encontrava-se dependente do vazio pra manter-se sólido. Era duro, impenetrável. Insolúvel . Incorrigivelmente gélido. E oco.

Na sexta à noite, desligava o celular e saía à farra. A noite inteira. Acordava geralmente ao meio dia, numa cama que não era a sua. Com o cheiro que não era o dela.  E a dona do cheiro da vez nem estava mais ali. Como sempre. Tanto faz, melhor assim.  Ia pro seu apartamento de solteiro, banhava-se e ia curar a ressaca na cama. Dormia o resto do dia, acordava por volta das sete da noite, banhava-se, vestia uma camiseta limpa, e saía novamente.  Enchia a cara no barzinho da boate e ia caçar. Acordava tonto na manhã de domingo, numa outra cama, com o cheiro de uma outra caça, num quarto de outra cor. Corria pro apartamento, banhava-se e caía na cama. Feito pedra, permanecia ali até por volta das três da tarde.  Acordava, e só então ligava o celular. 10 novas mensagens, 22 ligações perdidas... Carla, Juliana, Ana Clara, Mary, Laurinha, Cláudia, Beatriz... ahh, com um cardápio extenso desses, é uma pena que ter de ir trabalhar no dia seguinte!  Pensava, pensava, e escolhia uma. Dessa vez não bebia e voltava pra casa mais cedo, por volta das 2 da manhã. 
Dormia umas horinhas e acordava pra mais uma semana de negociações e contratos assinados.

E como se nada tivesse acontecido, nada sentia. No rosto, jazia o mesmo sorriso sexy da semana passada.  No ar ficava o rastro perfumado de sempre. Cheiro de fera, dragão.  E olhar de anjo, é claro. A armadilha perfeita.  
Por dentro, o mesmo vazio de sempre. Nem sombra de sentimentalismo. O oco era o modo como escolhera viver.

Assim, não vivendo, ele existia.

*

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O começo do fim de uma nuvem de névoa

   Às gotas, tudo ia ficando claro. À longuíssimas pausas, a névoa se dissipava, liquefazia-se. O orvalho começava a escorrer em rios, e ela sorvia cada gota. E estas amoleciam-lhe a alma. Como aquele sorriso. Aquele meio sorriso, bobo, inconsciente, que ele deixara escapar aos lábios. E ela vira.

   Seu olhar fotografou aquilo. Sua mente arquivou. Era uma gota a mais.
 
   Agora... só restava aquela velha dúvida sobre a veracidade do que via, do que ouvia... mas não podia esquadrinhar-lhe os pensamentos, analisar-lhe os fundamentos da razão... isso não podia. Infelizmente não podia. Ainda não tinham criado métodos para isso. Mas... ah, como queria!

   Se ao menos pudesse, por uns breves minutos, investigar-lhe a alma como Deus desvenda os pensamentos mortais...

   É que aquele olhar e aquele sorriso lhe eram tão compreensíveis quanto o latim a um desletrado... o coração traduzia-os como verdade, entretanto a razão não lhe deixava crer. A razão contestava até mesmo as palavras, julgando-as possivelmente fingidas. "Talvez seja tão acostumado à dizer inverdades que o que  quer que diga soa verdadeiro". Afinal, uma mentira mil vezes dita traduz-se facilmente em verdade, não é mesmo?

   Mas, aos poucos, toda aquela névoa se dissipava. A dúvida ia-se embora.

   E o orvalho lhe corria em rios, que banhavam-lhe a alma, abrandavam a fúria da razão e sobretudo, esculpiam-lhe na face umas linhas tão belas que... oh, espere, parece...

Sim!

Aquilo sem dúvida era nada mais nada menos que...um sorriso. E ele se esculpira tão lentamente que sua autenticidade jamais poderia ser contestada. Ela sorria sim. De corpo, alma, e juízo. À gotas, a névoa chegava ao fim.

domingo, 18 de março de 2012

Fotografia do caos

   Olho ao meu redor, gargalho, escrevo: o caos é tão... criativo!
   Mais uma bolinha de papel corta o ar em minha direção e eu me desvio naturalmente: já estou tão craque nisso que sequer preciso de esforço mental pra coordenar o movimento! Do meu lado, uma garota joga ferozmente os cabelos à frente para em seguida amarrar os fios no alto da cabeça: seus cabelos eram agora um negro chafariz jorrando pra cima, ridiculamente cômico, impossível não chorar de rir!  Outro cidadão aqui do lado está cantando o mais novo sucesso do Michel Teló num mix das versões em espanhol, inglês e sei lá mais o quê, gritando “ai, se yo te pego” numa placidez facial de quem canta Garota de Ipanema! E eu? Bom, eu solto mais uma gargalhada, e só. E escrevo, é claro. E o cidadão não entendeu o motivo da minha risada.
   Fazem 30 minutos que a professora de português chegou. E é claro que ela ainda não iniciou a aula. Está num infindável dilema sobre quem entregou ou não os trabalhos parciais, parece que alguns deles sumiram. Aí alguém grita que levaram os trabalhos pro banheiro e disponibilizaram para “uso higiênico”. Aí gargalho outra vez. E escrevo, é claro. Fossem outros tempos eu até ralharia com a idiotice da frase. Mas, hoje não.
   Hoje o ar é tão leve que até o caos ao meu redor é a mais bela obra de arte. O burburinho, os gritos de adolescentes à flor da pele, as batucadas que de vez em quando cismam fazer... tudo isso soa tão harmônico aos meus ouvidos que este meio sorriso insiste em não me sair do rosto. E pra completar a sinfonia, o pessoal do fundão começou a imitar o coaxar de sapos. Sinto-me em um brejo. Aí, gargalho outra vez. E pareço uma louca rindo sozinha.

É que, fossem outros tempos, estaria enfezada. Mas, hoje não. Hoje estou em paz.

Na verdade, hoje SOU em paz.

E a fotografia do caos me é à óleo de Picasso.   

Madrugada

E a chuva deitada
Caía em pé
E dessa madrugada
Seja o que Deus quizer

Se sobreviverei?
Isso eu sei que não sei
A profunda emoção
Vai além da razão!

De insônia não durmo
Em pensar no amanhã
Nasça pois, logo, o sol
Com todo o seu afã

Ilumine minhas ruas, minhas vida,
Meu campo, meu trampo
E que brilhe acima de você:
Que ilumine teus olhos,
Que me fazem viver!

terça-feira, 13 de março de 2012

Imperfeição

Era só...
uma coisinha boa transbordando-lhe o peito,
Uma estrela a mais no firmamento,
A canção preferida que não parava de tocar...

Nos rios de chuva a tremular o telhado,
No cheiro macio de abraço apertado,
Nas cores da rua sob o luar...

Ah! Finalmente sentia!
É que, de fato, descobrira algo que pouquíssimos mortais puderam descobrir. Fora incrivelmente privilegiada, e agora não conseguia desfazer o riso!
Não, não. Não eram gargalhadas. Era só... aquele tipo de sorriso que nasce entre as vísceras, sabe? Que lhe revirava o estômago e que acabava por relaxar-lhe inevitavelmente os músculos da face, que acabavam por deixar-se levar praquele sorrisinho que, por um segundo, lhe fazia a mulher mais linda do mundo.

Ah! Suas células gritavam. AH! Cada mililitro de sangue parecia estar plenamente consciente de sua nova consciência: o líquido vital fervia nas veias transformando-lhe a pele alva em carmim!

Ah!
O aroma denso de um café fresquinho,
O ventinho gelado pós-chuva na pele,
O sorriso de amigo,
A brisa de mar!

Hummm, descobrira! E era a sensação mais deliciante que já experimentara. E que experimentaria novamente toda vez que lembrasse que já experimentara.                                                        
Descobrira. Agora parecia tão óbvio! Mas, descobrira! E fora tão incrivelmente privilegiada que agora não conseguia desfazer o riso!
Não gargalhava, mas suas células gritavam. E ria aquele riso que vinha das tripas.                                   

Descobrira algo que pouquíssimos mortais puderam descobrir.

É que a perfeição que por anos buscara, e, por cansaço já cria não existir agora estava lá, debaixo de seu nariz.
E encontrara-a exatamente e absurdamente nas coisas que um dia julgara imperfeitas.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Amélia

    Estava lá, esparramada, há incontáveis horas. O corpo doía e o leito parecia ter-lhe aderido à carne. Sequer movia as pálpebras, tal movimento custava mais energia do que dispunha naqueles dias mórbidos. Estava acabada, esgotada, enferma. Aquela maldita doença arruinara sua vida. O pior é que só percebeu o quanto padecia quando desfez-se do medalhão de ouro, único bem que lhe lembrava os dias lindos.

...

    Acabara de acordar. O cheiro de café fresco e torradas amanteigadas de forno lhe despertara o estômago antes mesmo que os olhos abrissem à luz da manhã, e a menina caminhava ávidamente à cozinha do sítio guiada pela nuvenzinha de aromas que lhe chegava às narinas. Não demorou para ouvir a voz doce da avó lhe desejando bom dia enquanto descia as escadas de pinho perfumado na pontinha dos pés, tentando não ser percebida. Ops. Falhara novamente no seu plano de dar bom dia à avó antes que ela assim o fizesse. Era assim toda manhã: tentava, tentava e nunca conseguia. Vovó tinha ouvidos afiadíssimos, e apesar da idade avançada era capaz de ouvir até o som de alfinetes ao chão. Aí, a menina desistia da missão impossível e corria desembestadamente pros braços daquela a quem mais adorava no mundo inteiro, e pros seus deliciosos quitutes, obviamente! 
    A menina era ela, Amélia.

"Feliz aniversário, Amélia!"
"Oh, vovó! Que coisa linda!"

    Aquilo era ouro puríssimo, não restava dúvida. Tinha aprendido a reconhecer com o professor do internato. E era linda aquela estrelinha em relevo no centro do pingente, aquela de pontinhas arredondadas, que chamam de estrela de Davi.

"Pertencia à minha mãe. Durante a grande guerra eu tive que vir para o Brasil com uns amigos dela, e antes de partirmos ela me deu isto. Era uma época difícil pra nós. Não voltei a vê-la".
"Porque ela não veio com você, vovó?"
"Bom, Amélia, éramos judeus..."

    Amélia adorava as histórias que a avó lhe contava. Mas naquele momento, estava feliz demais pra reparar no olhar vazio que ela trazia : era 23 de Agosto, e ela tinha 11 anos, oficialmente!

...

"Oh, ela está acordando!"
"Mais 125ml de sedativo intravenoso".
"Sim, doutor".

...

    Em minutos ela caía em novo torpor. Não tinha mais 11 anos. E as doses fortes do álcool que consumira nos últimos anos fizeram-na parecer ter muito mais idade do que a identidade indicava. Era uma mulher de 27 anos com as rugas de alguém de 40, no mínimo. O sorriso, outrora motivo de orgulho tal era a brancura trazida pelos dentes alinhadíssimos, agora jazia em putrefação amarelada, era só mais uma de suas vergonhas. 
   O vício lhe furtara a gerência da empresa,o carro, o apartamento, móveis, beleza, marido, dignidade...tudo.
Nem lembrava mais quantas pessoas tentaram, em vão, tirá-la do túmulo que ela própria insistia em cavar. Dezenas lhe disseram que estava afundando, que esquecera quem era. Mas ela ainda tinha o medalhão, ora. Não estaria tão mal assim.

    Até que, num finzinho de tarde, acordou esparramada no chão do quartinho alugado, a cabeça latejando como sempre. Mas as mãos também tremiam, faltava saliva na boca e sentia uns arrepios esquisitos pelo corpo. Precisava beber, mas a carteira estava vazia.
    Saiu e trocou o medalhão por um litro de Vodka. Esvaziou a garrafa antes do cair da noite. E não caiu. Sequer tinha ficado bêbada, aquilo já não bastava pra tirá-la da realidade. Foi aí que percebeu. 

Entendeu. Reconheceu. Estava doente. E precisava da ajuda Divina. De um milagre.

Quando as lágrimas vieram aos olhos, ela correu. Desejou receber o abraço da avó no fim daquela corrida, como tantas vezes em sua infância. E sentiu nojo de si mesma por ser capaz de desejar aquilo. Não merecia perdão. Tinha trocado por Vodka! E um litro só. Continuou a correr e já não enxergava através das lágrimas.

Aí, viu uma luz.

E buzinas.

E mais nada.

...

    Não estava morta, disso tinha certeza. De vez enquanto escutava a enfermeira abrir a porta, e ela sentia picada de agulha nos braços. Só não conseguia reagir fisicamente à dor. À nada, aliás. Talvez estivessem induzindo-na ao coma pra poder tratá-la. Adoeciam-na ainda mais, para que pudesse viver. E ela deixaria. Se deixaria adoecer, morrer. Porque depois, quando ressurgisse, estaria forte. Seria um milagre. Recuperaria a vida, e o medalhão dourado.


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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Platônico

   Apesar de o sangue subir-lhe à face, no fim, cor alguma restava. E por maior que fosse a revolução dos sentidos ao vê-la, era sentimento efêmero. Quando ela lhe fugia aos olhos, nada restava.

Vasculhava a memória em busca de algo que sinalizasse a existência concreta de sentimento, um fato que justificasse aquele bem querer absurdo, qualquer coisa além da superficialidade da atração física, que era óbvia, e de razões óbvias: ela era linda. No entanto, concluiu que o que buscava não existia. Sequer a conhecia. Nutrira aquela afeição baseado unicamente no que via. Fora insensato. E frívolo. Morria de amores. Mas, era pelo quê mesmo? E ao perguntar-se, obteve o vácuo como resposta.

  Não havia nada real que justificasse aquele amor. Fora traído por si mesmo. Por seu próprio corpo, seus hormônios.
 
  E resolvera, naquele momento, que daria menor confiança aos sentidos. Confiaria menos na audição e extinguiria o crédito à visão. Pararia de agir feito um adolescente bobo. Afinal, tinha anos de experiência com o sexo feminino. Bastava ativar o modo sedução, e todas elas lhe caíam aos pés. Enlaçavam-se em suas palavras, cediam ao seu olhar.

Mas, pensando no assunto, Ela não cedera ao seu olhar. Tinha simplesmente ignorado seus métodos patenteados e lhe dava 'bom dia' na maior cara de pau. Ela lhe punha de quatro. Numa cegueira que fugia a razão. Amor platônico, irracional.

E só podia ser irracional mesmo. Estivera feito bicho por semanas. Mas, naquele momento tudo ficava óbvio. É claro que não estava apaixonado. O que sentira não passava de uma reação instintiva à rejeição. Por isso seu interior tinha se revirado. Naquela hora, dirigindo pro trabalho, afirmava a si mesmo que acabaria com aquela palhaçada. Ia ser homem, e sapiens sapiens, de preferência. Nem sabia nada dela, ora! Estava resolvido.

Chegou no escritório. Estacionou o carro e subiu as escadas.

"Gabriela?"
"Bom dia Fernando."

E aí, dane-se o que tinha resolvido dois minutos atrás. A testosterona falava-lhe alto.
Iria tentar outra vez, no intervalo. Talvez aquele perfume novo fosse ajudar...

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A bailarina

Era como se já ouvisse aquela linguagem muito antes de sequer conhecer as palavras. Não sabia como, mas a compreendia. Compreendia de uma maneira que ela própria reconhecia não beirar a sanidade. 
Ouvia, sentia, entendia e reagia.
Cada nota furtava-lhe o ar, penetrava-lhe as veias e lhe revirava a alma.
Lhe arrancava suspiros, suor.
O compasso fazia-a tremer em cada célula, as ondas levavam-na a êxtase.

Quando ocorria em público, aguentava firme, apressava o passo, e ao chegar em casa, trancava-se no quarto. Arrancava os sapatos e se entregava.

Fluía naquela estranha língua. Saltava, girava, jogava-se ao chão, lançava-se ao ar, retorcia o corpo dominado pela melodia. E se surpreendia a cada novo movimento. Seu corpo era capaz de decifrar em gestos cada vibração musical. Suas terminações nervosas reagiam tão ferozmente à harmonia que parecia não ser o cérebro quem a comandava. 

Fundir ao calor do som já lhe era necessidade fisiológica. Dançava porque precisava dançar. Tinha de dançar. Era seu mais forte ponto fraco.

Havia quem a julgasse dura, fria, impenetrável. Mas a dança era seu calcanhar de aquiles. Fazia aqueles olhos vazarem em lágrimas. Descompassava-lhe o ritmo cardíaco como homem algum fora capaz de fazer.

Era sua paixão. 
Seu mais profundo devaneio.
O único sonho que se permitia viver acordada.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

des_Equilíbrio

Êta escola de samba desgovernada essa vida réia tresloucada!                                                                                                 
Quando a gente acha que encontrou a razão essa arteira vem e te faz um furacão!                                                                                    
Se tu escolhes um caminho seguro, um equilíbrio, vem essa bicha louca te jogar numa bela corda bamba acima do precipício.

Só pra te ver tremer, vacilar, palpitar.

É justo naquela hora em que nós, pobres mortais nos entregamos ao sono, inevitável lapso de consciência, quando cansados nos recuperamos da rotina extensa, ela começa a trabalhar.
Junto com seus assistentes fiéis, é claro. Senhor Tempo e Doutor Destino (também conhecidos como Tico e Teco), todos comandados por Deus.

É quando você está dormindo, tranquilinho da silva que eles se encarregam de escrever o mais imprevisível roteiro pra você protagonizar, e sem nem te pagar cachê.  Bolam os mais maquiavélicos planos que sua mente sequer é capaz de imaginar.
Enquanto você está lá, fazendo sua viagem diária ao mundo dos sonhos esses danadinhos trabalham a todo vapor, estudando a forma MENOS SUTIL de te dar uma voadora de três pés, ou de te jogar de cara num punhado de excremento de cavalo, ou num lugar ainda mais perigoso: nos braços de alguém. 

É, caro cidadão: a vida te joga na parede e te chama de lagartixa!

É claro que no fim tudo o que ela quer fazer é te ensinar.

Mas se eu fosse você, começaria a pensar em não dormir!