sexta-feira, 5 de junho de 2020

Rainha Carlota

Querido vizinho da rua de trás;

Te escrevo na esperança de que você possa ao menos compreender uma sombra dos motivos que tenho para não cortar minha árvore.
Não é tão simples quanto parece.
Lamento que suas folhas douradas chovam no seu quintal limpinho.
Lamento que quando o vento sopra forte em seus galhos você seja arrebatado pelo medo de que algum galho dela quebre e rache um pedaço do chão de cimento.
Lamento que você olhe para ela a tremular no céu e não veja o que eu vejo.

É que Carlota é uma rainha. E eu a amo.
Ela foi a primeira forma de vida a habitar este quintal que outrora era pura aridez.
Você bem sabe que aqui nem mesmo capim selvagem brotava - nossas casas são iguais, assim como o solo de nossos quintais eram os mesmos, feitos de aterro de construção compactado.  Pois bem, você deve lembrar.
Isso antes de Carlota chegar na minha vida, é claro.

Carlota é a expressão da vida pulsante e desavergonhada. Transgressora.
Fato é que esta minha hoje senhora, quando ainda uma muda jovem perfurou este solo devastado com suas raízes mágicas, e orquestrou o milagre da vida em meu minúsculo quintal.
Hoje temos minhocas! Mi-nho-cas!
Você sabe o que é uma terrinha preta, cheia de casinhas maravilhosas das minhocas?
Pois eu sei, de abrir a janela.

Ah! Abrir a janela.
Essa é outra coisa que era impossível sem Carlota aqui. Você sabe esse bafo de quentura que sobe no seu rosto quando você abre a sua janela aí ? Você fecha bem rapidinho né? Pois é.
Eu bem me lembro que isso existia aqui também antes dela.
Mas aqui isso é coisa extinta hoje, Carlota é uma máquina de ar fresco!

Voltemos às folhas que caem.
Juro que tem uma horinha pela manhã que me faz ter certeza da sua realeza - a hora que o sol bate no tapete de folhas douradas aos pés da rainha. Se você visse o resplendor de Carlota nesse minuto você iria entender o que eu te digo.
Até o sol sabe quem é Carlota quando brilha nesse meu quadradinho de quintal.
Pisar nesse tapete de sol e folhas é minha música favorita.

Antes de Carlota, você ouvia bem-te-vis?
Você via borboletas, e beija-flores e abelhas?
Sua copa é uma casa.
Tem pelo menos sete tipos de passarinhos morando nela, pelo que vejo daqui.
Os fios finos de raízes aéreas que brotam dos galhos são a matéria prima dos ninhos.
Vejo as rolinhas carregando e tecendo o berço da vida com eles. 
O som que a chuva faz quando escorre sobre a copa-casa é uma coisa ainda melhor que chuva na telha. É como ouvir a chuva de muitas telhas, é o som de muitas casas.
É ouvir o abrigo de muitas vidas.

À noite ela fica salpicada de vaga-lumes, como se fosse sempre Natal.
Às vezes quando fecho as janelas sobram dois ou três no meu quarto.
Fico com os olhos acompanhando o piscar, e durmo com as estrelas.


*



quinta-feira, 4 de junho de 2020

Avesso

Tudo que eu digo é frase em desalinho
o que canto não indica caminho
o meu pranto é vão, é sozinho

De meus dedos tortos saem palavras-flechas
mas estas nem tapam as brechas
e nem podem abrir a porta que fechas

Se você é pipa sou linha de cerol
não posso ser vento nem lua nem sol
se você virar peixe, engasga no meu anzol


*