terça-feira, 13 de agosto de 2024

Pantera

Não estamos à mesa 
para que venham os talheres de prata 
para que venham as bandejas 
para que venham as taças de cristal 

E num banquete plácido 
nos devorem 
enquanto limpam nossos fluidos do canto da boca com guardanapos bordados
Harmonizadas com vinho rosé 
Enquanto bêbadas acreditamos estar plenamente satisfeitas num banquete que nos 
Desossa
Dessora 
Disseca 
Resseca 

Nós, fontes de tantas águas 

Uma pantera de olhos verdes 
hoje me disse 
Case, minha filha
É o que as filhas de Jeová fazem de mais certo na vida
A pantera, no entanto, 
Nos seus 77 anos bem vividos 
Teve dois filhos lindos
Vários amores
Muitos banhos de rio e de açude 
E passeios ao sol :
Nenhum marido 

A senhora é casada? 

Seus dois olhos riram 
e a gargalhada foi alta 
quando respondeu :
Graças a Deus, não.


* * *

 
( Sim, essa história é mais ou menos real e se mistura com uma pintura da carol burgo que me deixou impressionada por ter aparentemente a ver com uma conversa maravilhosa que tive na fila do posto de saúde no mesmo dia . 
a pintura: https://www.instagram.com/p/C-nizh_PDXR/?igsh=cHV0ZWs5c2Fwc2x0 ) 

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Inquietação

Fome
Fome da própria
Fome 

Fome de vida
Fome de ver da de
Fome de no vida de 

Vida de verdade
In vade o centro
Da von ta de 

E rasga o cerne 
Da vai da de 
Reelabora a
Par ti tu ra 

Desfaz o 
Me do 
da verdade 

Iluminura

Me inaugura
Em ser de novo 
Li ber da de


*  *  *



Às fomes que despedaçaram aquilo que fui 
(e àquelas que ainda me despedaçarão)




sexta-feira, 17 de maio de 2024

Âncora

De submersas 

palavras 

nas entranhas 

do que disse 


Submarino 

deslizante 

no oceano 

da mesmice


Ao súbito soprar na superfície


* * *

domingo, 12 de maio de 2024

Festa

A varanda da casa não via uma cena daquelas à muito tempo. 
Talvez nunca tivesse visto. 
A mangueira, habituada à festa tímida dos cactos e suculentas que agradeciam solenes pela umidade esporádica, não imaginava que o dia era da festa de outra espécie, a humana. 
Os humanos mesmo não precisavam de água por fora, não era lá uma questão de vida ou morte, de desidratação. 

Era uma questão de pele. 
Era a festa da pele. 

Fazia calor e era até fácil ter aquela ideia quando os sentidos não estão disciplinados à vida comportada. 
Quando se deixa pra lá o que convêm. 

Pois sim. 

A proposta foi a de tomarem banho, juntos, de sol e de luz, na varanda, e de mangueira. E como eram jovens e como era domingo, e como domingo fosse o dia do sim, foram.

Arco íris se desprendiam das gotas no ar e cachoeiras escorriam da pele. 
Os poros acordavam e a vida parecia muito viva. 
O calor ainda fazia correr um arrupeio nas peles, que agradeciam a carícia das águas. 
Pois sim. 
Banho de mangueira no jardim. 
Festa de humanidades, ritual dos agoras. 
E convite e primórdios das outras festas de depois, começada também nos poros, mas feita da linguagem de outras águas. 

sábado, 16 de março de 2024

Ora-pro-nobis

Quase nunca visto laranja
por fora
mas sempre por dentro

Nas cores das flores
no cobre do sol
nos flamboyants

Nas paredes cor de terra
nos crepúsculos
no tijolo de barro cru

Nas telhas da minha casa
atravessadas de luz,
nos tapetes

No mamão suculento
do café da manhã
nas tangerinas

Por dentro,
laranja é a cor
mais rente

latente
ardente
mais quente


* * *

sábado, 2 de março de 2024

Silêncio

 De vez em quando me vem um cansaço imenso de ser um ser que fala. 

As palavras parecem todas vazias de significado, a comunicação verbal um aparato inútil. Vejo os seres humanos ao meu redor, e eu mesma, articulando a boca sem parar e emitindo sons que nada dizem.

 Estamos perdidos uns dos outros. 

Tão ansiosos, tão cheios de porvir e esvaziados de presença. Parece que a gente se dilui na aceleração do tempo capitalista, viramos um borrão na tela, uma ideia fugaz, e mesmo ali diante do outro não passamos de uma rolada de feed. 

Radicalmente, esquecemos da gente mesmo. Parece que a gente flutua em tanta possibilidade que não é capaz de materializar nenhuma. 

Será que é isso, o futuro? Projeções mentais invisíveis sobre uma realidade cinza? 

Feeds coloridos e retinas incapazes de ver as cores reais? 

Gramas vizinhas sempre tão melhores que deixam o meu próprio jardim um lugar seco, desmerecido de cuidado e umidade? 

Tantas palavras me levam sempre a desejar o silêncio. 

Ah. 

Um longo e doce período de nada dizer.